Publicadas originalmente em França, as
Memórias de Sebastião Salgado foram
editadas em 2014 em Espanha, com a chancela de La Fábrica. Intituladas em
castelhano De mi tierra a la Tierra.
Memorias, surgiram nas livrarias praticamente em simultâneo com a exposição
que, no CaixaForum, esteve patente no coração cultural e turístico de Madrid. Salgado
expôs aquele que, ao que tudo indica, será literalmente o seu último grande projecto,
Génesis, iniciado em 2002 e só
concluído ao fim de oito anos de trabalho e de 32 longas reportagens; em 2013, a
Taschen deu-o à estampa em várias línguas, incluindo o português.
O relato memorialístico de Sebastião
Salgado foi feito com a colaboração de Isabelle Francq e, pelas palavras desta
no prólogo, tudo indicia tratar-se do resultado de uma longa entrevista
autobiográfica, em que aquele expôs à jornalista os diversos passos de uma
trajectória que culminou na sua elevação ao estrelato de celebridade mundial.
Sebastião Salgado é, muito provavelmente, o fotógrafo mais conhecido e mais popular
do nosso tempo.
Também
no Brasil, a editora Paralela publicou estas memórias, com o título Da minha terra à Terra, frase que
sintetiza, mais do que uma vida, a imagem que dela se quer projectar. Aí
sobressai a transição das origens num território já de si vastíssimo para um
ponto de vista que pretende abarcar o planeta inteiro, com especial ênfase nos
seus lugares mais remotos, sejam cálidos ou gélidos. Tal passagem – da terra à Terra – foi possível devido à
imensidão do país de nascimento e também, ou acima de tudo, ao facto de Salgado
professar uma inabalável fidelidade às suas raízes, declarando que sem elas
jamais teria sido possível operar actualmente a uma escala tão ampla. Se o
centro da sua longa marcha rumo à consagração como fotógrafo global principiou na Europa, Sebastião Salgado, que conheceu
anos de exílio e chegou a obter a cidadania francesa, reclama uma brasilidade profunda, quase atávica e
mística, em que a Terra só foi conquistada devido à sua lealdade à terra, ao
lugar a que regressou para criar uma organização denominada, não por acaso,
Instituto Terra, dedicado à reflorestação da mata atlântica, «utopia feita
realidade» que já plantou dois milhões de árvores com o apoio do Banco Mundial,
do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade e de grandes empresas, como a companhia
mineira Vale do Rio Doce e a cosmética brasileira Natura, ou de fundações
privadas francesas, como Nature & Découverte, Yves Rocher, Aventis Pasteur
ou Anne Fontaine. Também a Taschen contribui para o sucesso do Instituto Terra.
A
esta luz, a específica génese de Sebastião Salgado, pessoalíssima e
intransmissível, explicaria todo o caminho que, décadas depois, teria o seu
apogeu em Génesis. Afirma que sempre
possuiu «a sensação de ter crescido no paraíso», culminando a sua carreira com
uma obra em que a referência ao Éden vai muito para lá do título. Ao exaltar daquela
forma tão intensa a influência das suas origens, o fotógrafo, consciente ou
inconscientemente, relega para um plano secundário, como que descartável ou
meramente acidental, o facto de só graças à congregação de recursos materiais absolutamente
invulgares ter podido desenvolver projectos de uma duração e de uma envergadura
a que muito poucos podem aspirar. Por outras palavras: se, no plano imaterial,
do afectivo e do imaginário, Minas Gerais foi a fons et origo da sua obra, esta nunca teria visto a luz sem uma
eficientíssima gestão de carreira e de meios, realizada com base em Paris.
A estrutura desta obra relativamente
breve, com cerca de 160 páginas, encontra-se ordenada segundo um critério
cronológico, o que, a par da fluidez e da simplicidade da escrita, muito
contribui para facilitar a sua leitura. Para mais, Sebastião Salgado evita
tecer considerações «intelectualistas» sobre a sua arte ou, como decerto
preferirá chamar-lhe, sobre o seu trabalho. O livro assume, assim,
características predominantemente autobiográficas, entrecortadas aqui e ali por
observações de índole ideológica extremamente difusas e até mesmo francamente
banais. A obra vale, pois, enquanto reconstrução linear do percurso de um dos
maiores – ou, pelo menos, dos mais conhecidos – fotógrafos da actualidade. A
riqueza e a diversidade da sua vida encontram-se palidamente reflectidas neste
pequeno livro, que não representa ainda, de modo algum, a biografia «definitiva»
de Sebastião Salgado. No entanto, como o fotógrafo trabalhou frequentemente
sozinho, passando largos períodos em extremos longínquos sem a presença de
colaboradores ou outras testemunhas, e como os episódios que viveu e as pessoas
que conheceu dificilmente poderão ser resgatados sem a sua intercessão, será
difícil, ou quase impossível, escrever uma biografia de Sebastião Salgado que
não se atenha a aspectos decisivos (as agências, os contactos, os prémios, as
redes das indústrias da cultura) mas algo extrínsecos ao essencial. Um
essencial que é este: a retina dos seus olhos e as objectivas das suas câmaras
viram e captaram o mundo no que este encerra de mais horrível e de mais belo,
ou seja, nos graus mais superlativos que possamos conceber.
Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu
em 1944 no Estado de Minas Gerais, numa fazenda situada no interior do vale do
Rio Doce, um território que, como faz questão de lembrar, tem uma superfície
idêntica à de Portugal. A questão da escala da terra, surgida logo nesta
observação feita en passant nas
primeiras páginas do livro, virá a desempenhar um papel crucial em toda a obra
do fotógrafo.
Filho de um fazendeiro relativamente
abastado, sobretudo para os padrões do Brasil rural da década de 40 (na
fazenda, auto-suficiente, viviam cerca de 30 famílias), Salgado apresenta a sua
infância e primeira juventude como um tempo idílico em que, convocando de novo
a questão da escala, percorria sozinho milhares de quilómetros, cobrindo distâncias
equivalentes à que separa Paris de Moscovo. Naquele vale tão verde, ninguém era
rico e ninguém era pobre. Vivia-se num comunitarismo pré-industrial que
desconhecia a desigualdade ou as assimetrias de riqueza e que, recorda
Sebastião, só tinha acesso à civilização através da linha ferroviária da
companhia Vale do Rio Doce. Por vezes, na estação das chuvas, ocorriam aluimentos
de terras que deixavam as povoações isoladas durante meses, o que em nada
afectava o delicado equilíbrio homeostático, natural e social, que ali haviam
construído durante décadas. Foi neste paraíso nostalgicamente evocado que o
jovem Sebastião nasceu e cresceu, em deleite de felicidade pura. Os pais
autorizavam-no a visitar as irmãs, já casadas, que moravam em terras longínquas
para os nossos padrões, mas não para os de quem habitava um país que, como ele recorda,
tem quinze vezes o tamanho de França. Com alguns companheiros e empregados, o
pai chegava a fazer caminhadas que demoravam 45 dias de viagem, transportando varas
de centenas de porcos pelos trilhos e veredas de Minas Gerais. Sebastião
participava nessas digressões pelo interior do Brasil, em que o dia começava às
quatro da madrugada com um prato de feijão
tropeiro. Encontra nessas juvenis jornadas a explicação para tudo o que
será depois, um «fotógrafo do mundo» em permanente errância, que já esteve em
mais de 120 países. «Alguns dizem: Salgado tem delírios de grandeza. Nasci num
país imenso», observa.
Além da escala e da dimensão espacial,
há outra faceta que Sebastião Salgado, algo previsivelmente, realça desde o início
destas suas memórias: o tempo. O livro começa, aliás, com uma descrição do
tempo e da paciência que despendeu em 2004 para conseguir captar imagens de uma
tartaruga gigante das Galápagos. Um dia inteiro para se aproximar do animal
antediluviano que, arrastando vagarosamente os seus 200 quilos, se esquivava com
sucesso a qualquer contacto humano. «Quem não goste de esperar não poderá ser
fotógrafo», é a frase – de resto, assaz vulgar – com que abre o livro, obra em
que se define como um «caçador de imagens» que sabe aguardar pelas suas presas.
Esta aprendizagem da lentidão é igualmente remetida para a infância e
juventude, lembrando o fotógrafo os longos dias dos trajectos a cavalo pelo
interior brasileiro, em que os caminheiros «tinham tempo para falar, contemplar
a paisagem». «Essa lentidão é a mesma da fotografia».
Aos 15 anos, foi viver para Vitória,
no Estado de Espírito Santo, onde concluiu os estudos secundários. Enquanto
estudava, trabalhava na tesouraria da Alliance Française, iniciando uma ligação
profunda à cultura francófona que perdura até hoje, sendo Paris a cidade onde
reside e possui a agência fotográfica que fundou com a sua mulher, Lélia Wanick.
Conheceu-a justamente quando trabalhava na Alliance Française, tendo ele vinte
anos e ela dezassete. O casal permanece junto há mais de 45 anos, com
flutuações e crises conjugais que Salgado não escamoteia, naquele que, a par
das linhas dedicadas ao filho Rodrigo, com síndrome de Down, é o momento mais
intimista das suas Memórias. As
constantes menções que faz à sua mulher comprovam que esta tem um papel
determinante quer na concepção dos seus diversos projectos fotográficos, quer
na arquitectura dos seus livros, quer, enfim, na difusão universal da sua obra.
Depois de se licenciar em economia,
fez um mestrado na Universidade de São Paulo. Nas aulas da universidade, e
sobretudo no convívio dos meios estudantis, foi marcado pela ideologia
terceiro-mundista que, de uma forma mais matizada e mesclada de outros
elementos agora mais salientes (v.g.,
o ambientalismo e a antiglobalização), continua a caracterizar a sua concepção
do mundo. Sem ter aderido ao Partidão, reconhece a influência que os comunistas
tinham nos meios que frequentava, só igualada pela das associações cristãs de
esquerda, como a Juventude Escolar Católica. Sem explicar como lá chegou,
juntar-se-ia a um grupo mais radical, a Acção Popular, que a dado passo, e sob
inspiração cubana, trilhou a via sinuosa da luta armada. Sebastião Salgado não
especifica se participou em algumas das acções desse grupo nem alude ao facto
de, segundo se diz, ter conhecido pessoalmente o mítico guerrilheiro urbano Carlos
Marighella (a grande biografia de Marighella, publicada em 2012 por Mário
Magalhães, não faz qualquer menção ao fotógrafo). Refere, todavia, que a
instauração da ditadura militar, em 1964, o obrigou a exilar-se juntamente com
a sua mulher. Em Agosto de 1969, o jovem casal partiu de barco rumo a França,
«a pátria dos direitos humanos e da democracia». Em Paris, Lélia matriculou-se
em arquitectura e Sebastião preparou o seu doutoramento em economia. Para
custear as despesas, ele descarregava camiões da residência universitária onde
viviam e ela trabalhava na biblioteca. Aos fins-de-semana, num 2cv, atravessavam
o país de lés a lés para angariar fundos de apoio aos exilados brasileiros que
afluíam ao país, trazidos clandestinamente através da Argentina e do Uruguai.
Aos sábados, iam com os compatriotas a Verdun ou a Metz, e cozinhavam pratos
brasileiros para os almoços em que Lélia cantava para os seus companheiros de
luta e de infortúnio. A experiência revelar-se-ia essencial na afirmação futura
de Sebastião Salgado como fotógrafo engagé.
Foi nessa época que entrou em contacto com uma miríade de organizações – de
confederações sindicais ao Partido Comunista, passando pelos movimentos cristãos
como o CCFD (Comité Católico contra a Fome e para o Desenvolvimento) e o Cimade
(Serviço Ecuménico de Ajuda Mútua, de apoio aos imigrantes) – que teriam papel decisivo
na publicação dos seus primeiros trabalhos. Na Primavera de 1970, o 2cv de
Sebastião e Lélia levá-los-á a Genebra, onde era mais barato adquirir o
material fotográfico de que ela necessitava para os seus estudos de arquitectura.
Ao captar as suas primeiras imagens, Sebastião ficou maravilhado. Tinha 26
anos, pegara na máquina de Lélia por casualidade. «Nasceu em mim um entusiasmo
incrível». Sonharam na altura comprar uma Volkswagen Kombi e percorrer África
num périplo fotográfico, desconhecendo que, anos mais tarde, aquele misterioso continente
iria servir de cenário a alguns dos mais importantes projectos de Sebastião
Salgado, com destaque para o que se materializaria em livro em 2007, justamente
com o título África.
Concluídos os estudos
pós-universitários em Paris, obtém um confortável e promissor lugar em Londres,
na Organização Mundial do Café. Projectava redigir aí a sua tese, o que acabou
por não fazer. Nesse tempo, o casal vivia desafogadamente e gozava as delícias
do consumo conspícuo, adquirindo um magnífico Triumph e um espaçoso apartamento
nas imediações de Hyde Park. O seu trabalho, alinhado com a voga
desenvolvimentista que então marcava as organizações internacionais, pô-lo em
contacto com o Banco Mundial e com a FAO. Nesse âmbito, foi um dos responsáveis
pela introdução da cultura do chá no Ruanda. Em 1991, quando ali se deslocou no
âmbito do projecto A Mão do Homem/Trabalho,
ficou maravilhado com as plantações, dizendo que o Ruanda produzia o melhor chá
do mundo, o mais cotado de todos na bolsa de Londres. Três anos depois, o tempo
iria sofrer uma súbita aceleração. Em 1994, no espaço de poucos meses, o sangrento
conflito entre hutus e tutsis vitimaria praticamente um milhão de pessoas,
dizimando um décimo da população do país. Sebastião Salgado fotografaria os
refugiados desta tragédia, das maiores que África conheceu no século XX.
África foi o «meu outro Brasil», a
terra onde reencontrou a imensidão da escala que na Europa lhe faltava. Aos
domingos, remando num barco alugado no lago de Serpentine, em Hyde Park,
partilhava com Lélia a angústia de uma radical opção de vida, interrogando-se
sobre se deveria dedicar-se inteiramente à fotografia. Acabou por fazê-lo,
deixando o emprego certo na Organização Mundial do Café. O Triumph e o apartamento
londrino foram vendidos, Sebastião regressou a Paris. No Verão desse ano, com
Lélia grávida de Juliano, o primogénito, fizeram a primeira expedição
fotográfica a África, uma travessia do Níger com os compagnons do CCFD. Esta organização católica iria utilizar uma das
fotografias aí tiradas por Salgado num cartaz da campanha La terre est à nous. De súbito, a imagem estava afixada em todas as
igrejas de França. O dinheiro pago pela CCFD era suficiente para comprarem um
pequeno apartamento, mas decidiram investi-lo antes na aquisição de material
fotográfico: as inevitáveis Leica e um ampliador. Salgado não descreve a sua
profissionalização como fotógrafo em tons grandiloquentes nem evoca qualquer
sentido de «missão» no rumo que deu à sua vida. Essa é, aliás, uma das
qualidades destas Memórias, a lhaneza
com que o fotógrafo descreve o seu trabalho, raramente lhe atribuindo
propósitos que transcendam o próprio acto de fotografar. Tal discurso é, por
vezes, levado a extremos, nomeadamente ao rejeitar o qualificativo de fotógrafo
«militante», quando, na verdade, existe um inquestionável engajamento
político-ideológico em praticamente todos os seus projectos, facto que, em si
mesmo, não merece censura ou sequer crítica. Aliás, apesar de recusar o epíteto
de «militante», assume e convive tranquilamente com a natureza ideológica de
muitos dos trabalhos que desenvolve, esclarecendo apenas, e bem, que essa
dimensão não explica a totalidade da sua obra.
Tomada a decisão de se
profissionalizar como fotógrafo, a lentidão do tempo sofreu um repentino revés
e a carreira acelerou de forma fulgurante. De permeio, os testemunhos de
brasileiros exilados em Praga e algumas desventuras vividas no bloco de Leste
(na RDA, Sebastião e Lélia viram-se subitamente rodeados pela polícia, «uns
tipos cobertos de cicatrizes, de aspecto terrível», que lhes apontavam
metralhadoras) afastam-no em definitivo da órbita do comunismo: «demo-nos conta
que o sistema que para nós representava um certo romantismo era desprovido de
qualquer sensibilidade». Não abandonando um programa que define por «fotografia
social», passou a situar-se num certo limbo ideológico. Neste no man’s land de referências, o
progressismo católico teve um efeito salvífico. Salgado começou a trabalhar
mais intensamente com o CCFD e com o Cimade, publicando as suas reportagens nas
páginas de Cristiane, de La Vie Catholique ou de SOS, o periódico mensal do Secours Catholique. Apesar da marca
eclesial, não eram boletins paroquiais: La
Vie Catholique tinha uma tiragem de 500 mil exemplares e SOS editava todos os meses um milhão de
cópias. O nome de Sebastião Salgado como fotógrafo
do subdesenvolvimento começa a tornar-se conhecido e, sem cometer a
injustiça de dizer que o exilado brasileiro procurou satisfazer os desejos do Zeitgeist dos alvores dos anos 70, o
certo é que os temas que elegeu e até a pureza e a crueza das suas imagens a
preto e branco estavam em sintonia perfeita com o gosto do grande público e também
com o ethos das organizações internacionais,
quer as que gravitavam na órbita das Nações Unidas, quer as que se orgulhavam
do seu carácter «não-governamental». Nunca foi um «criador», um alternativo ou
marginal ao establishment. Pelo
contrário. Recusando qualificar-se como fotojornalista, mas igualmente não
ousando realçar a natureza «artística» das suas imagens, granjearia o
entusiástico apreço das organizações internacionais, trabalhando com frequência
para a UNICEF, os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha ou a ACNUR. O
«humanismo» dos seus projectos ia plenamente ao encontro do «humanitarismo» das
instituições internacionais, cuja actividade muito dependia de campanhas em que
a imagem fotográfica desempenhava um papel fundamental na sensibilização das
consciências e na mobilização das boas vontades.
Entre a geopolítica da fome e o
pós-marxismo antiautoritário, a que se adicionam laivos do tradicional antiamericanismo
francês, Salgado compara o seu trabalho ao da literatura: «aquilo que os
escritores reconstroem através das suas plumas, eu reconstruo através das
minhas câmaras. A fotografia é para mim uma forma de escrita. É uma paixão,
porque amo a luz, mas é também uma linguagem». Memórias é um livro excessivamente atravessado por observações
deste género, destituídas de especial originalidade ou densidade. De facto, e
como igualmente acontece com muitos outros criadores, é nas suas obras
fotográficas, e não no discurso que desenvolve em seu redor, que o talento de
Sebastião Salgado mais se destaca.
Para isso – e o autor reconhece-o –
muito contribuiu uma larga experiência nas mais conceituadas agências fotográficas
do mundo. Esteve um ano na Sygma, trabalhou na Gamma entre 1975 e 1979, onde
beneficiou do contacto com colegas de ofício como Raymond Depardon, Marie-Laure
de Decker ou Hugues Vassal e sobretudo do redactor-chefe da agência, Floris de
Bonneville. «Devo muito a Floris», diz, acrescentando, o que provavelmente
corresponde à verdade, que a sua formação académica como «economista global»
lhe trouxe um olhar sobre a realidade do trabalho à escala planetária que
outros não possuem. O «sistema», por outro lado, encontrava-se particularmente predisposto
a acolher as suas fotografias e o seu estilo despojado e directo, tendo as
imagens de Salgado sido divulgadas nas mais reputadas publicações do Ocidente,
como Paris Match, Stern, Time ou Newsweek. O seu
lançamento enquanto fotógrafo coincide com o período da afirmação do Terceiro
Mundo como ideologia e prolonga-se na fase de autocrítica pós-colonial feita
pelos meios intelectuais e pela opinião pública do hemisfério Norte. Se o seu
discurso assume, com frequência, contornos luditas e condenatórios do «progresso»,
o seu anti-ocidentalismo não comporta uma dimensão autopunitiva. A invocação
das raízes brasileiras, uma vez mais, é um argumento utilíssimo, que o exime a
tal exercício de flagelação. «Não sou originário da metade norte do mundo e não
partilho o sentimento de culpabilidade de alguns dos meus colegas», afirma, poucas
páginas antes de anunciar que em 1994, juntamente com Lélia, fundou a Amazonas
Imagens, com sede nas margens do Canal Saint-Martin, em Paris.
Sebastião
Salgado herda e nasce no seio do terceiro-mundismo das décadas de 60 e 70,
acompanha a vaga humanitarista dos anos 80 e a partir daí afirma-se através de
um conjunto de obras publicadas em vertiginosa cadência, de que se destacam Outras Américas (1986), Trabalho
(1993), Terra (1996), Êxodos (2000), África (2007) e Génesis (2013).
Integra uma plêiade de intelectuais e criadores – como García Márquez ou José Saramago
–, quase todos de esquerda e provindos das periferias, que alcançaram sucesso
mundial graças a dispositivos de promoção que, actuando segundo princípios de
mercado, os projectaram a uma larga escala, como marcas ou objectos de consumo
de massas. Esta constatação não transporta qualquer carga pejorativa nem possui
um sentido condenatório. Evidencia, tão-só, que o Ocidente é acometido, com regular
frequência, por sentimentos de culpabilidade e insatisfação, a que deu
implacável resposta através dos seus próprios mecanismos de autodefesa: com extraordinária
eficiência, criou uma lucrativa «indústria» vocacionada para padrões de consumo
que só na aparência são «alternativos». Assim, instauraram-se hábitos, modas e,
na linguagem do marketing, «nichos de
mercado» que permitem aos compradores aliviarem as carteiras, as depressões e o
stress, mas também as consciências, humanitárias ou ecológicas. Dos cosméticos
feitos exclusivamente à base de produtos naturais às novas espiritualidades de raiz
oriental, passando pela world music ou
pelas viagens a lugares ainda não devassados pelo turismo de baixo custo, tudo
remete, afinal, para a mesma lógica. O altermundialismo académico e político, a
moda literária do realismo mágico ou os coffee
table books com fotografias de Sebastião Salgado inscrevem-se igualmente
nessa vaga e participam em pleno deste comércio, com a enganadora convicção de
que o não fazem – ou, pior ainda, com a presunção de que, apenas por adoptarem
um registo crítico nas suas intervenções, são moralmente superiores perante o capitalismo
e suas perversidades.
Em 1976, o governo brasileiro recusou renovar-lhe
o passaporte. De imediato, a República francesa concederia a sua nacionalidade
ao expatriado da ditadura militar. Juntamente com um amigo, Augusto Boal,
encenador brasileiro refugiado em Portugal, impugnaria judicialmente a decisão
do Itamaraty, vencendo a causa nos tribunais e assim criando um precedente para
todos os que, como ele, viviam exilados – e que logo contrataram advogados para
seguirem o seu exemplo. Não admira, pois, que, nestas Memórias, por diversas vezes sejam louvados Lula da Silva e Dilma
Rousseff. Quanto aos demais e actuais líderes da América Latina, não é feita
qualquer referência.
No
ano de 1979 ocorrem duas importantes mudanças na sua vida. Graças à lei da
amnistia, obteve autorização para regressar ao Brasil e, por outro lado,
começou a trabalhar na Magnum, agência onde permaneceu quinze anos, conhecendo
nomes lendários da fotografia como Henri Cartier-Bresson ou George Rodger. Em
1981, no decurso de um trabalho para o New
York Times, teve a suprema ventura de, por um acaso, estar muito próximo do
local em que Ronald Reagan foi vítima do famoso atentado a tiro à porta do
Washington Hilton Hotel. Todas as fotografias que tirou nessa ocasião foram
imediatamente vendidas, por um preço que o autor não especifica mas que, por
certo, terá sido muito elevado, pois, segundo ele, as imagens do presidente
Reagan baleado em Washington permitiram restaurar as suas finanças pessoais e
também as da própria agência Magnum. É sintomático que, passado esse furor
mercantil, Sebastião Salgado, em conjunto com a sua mulher, tenha decidido que
aquelas fotografias nunca mais deveriam ser publicadas. Com essa decisão tão
radical, e que por certo implicou avultados prejuízos financeiros, pretendeu o
casal acentuar que Salgado não era um fotojornalista. Por isso, só um
imperativo publicitário explicará que, na capa da edição francesa destas Memórias, surja a afirmação do The Sunday Times: «O maior
fotojornalista do mundo». Não é essa, decididamente, a imagem que Sebastião
Salgado quer transmitir, mas antes a de um fotógrafo
planetário. Consolidada a sua reputação, galardoado em 1986 com o World
Press Photo, afirmou-se paulatinamente como o autor de grandes reportagens que
levavam anos a planificar e implicavam a sua deslocação a vários pontos do
globo, pois só assim conseguiria encontrar coerência a uma escala tão grande, a
maior escala possível. Coerência temática, acima de tudo, mas também coerência conceptual
e iconográfica. Cada reportagem seguia um método preciso, que começava na
escolha do tema (trabalho, migrações) e acabava na edição de um livro de grande
formato e em amplas exposições que percorriam as principais cidades do
hemisfério Norte. Para melhor concretizar este programa, sairá da Magnum e, em
1994, fundará com Lélia a Amazonas Images, que reúne em Paris uma equipa de
várias pessoas, entre documentalistas, especialistas em imagens digitais e
reveladores fotográficos.
Só de uma maneira muito fugaz e
lateral Memórias consegue captar a
envergadura do trabalho de Sebastião Salgado, a imensidão dos espaços que
percorreu, aquilo que lhe permite assumir-se como legítimo herdeiro dos grandes
foto-repórteres do passado e da sua glamorosa intrepidez. Quando chegou à Serra
Pelada, no Pará, e desceu à mina, foi recebido com hostilidade pelos que,
cobertos de lama e terra, se assemelhavam a figuras de barro lavradas pelo Aleijadinho.
Enquanto descia a 70 metros de profundidade, 50.000 homens encaravam-no de
forma ameaçadora, julgando ser um espião a soldo da empresa Vale do Rio Doce, que
vinha apropriar-se da preciosa terra e expulsá-los dali. A lentidão do tempo
encarregar-se-ia de desfazer o equívoco, a ponto de, conquistada a
familiaridade dos garimpeiros, ter ficado a saber que, entre aqueles machos
rudes que escavavam a lama na febre do ouro, se encontravam uma comunidade gay e até transsexuais. A dado passo, um
mineiro, com o corpo coberto de cicatrizes de navalhadas, confessa-lhe que, se
a sorte o bafejasse, utilizaria a fortuna para concretizar o sonho da sua vida:
viajar até Paris para aí implantar peitos de silicone de primeira qualidade, os
melhores, os mais belos de todos. As histórias sucedem-se, em todas as partes
do mundo: em Cuba, são os torcedores de tabaco que outrora narravam fastos da
corte do rei Artur e agora, enquanto fabricam os puros, desfiam as vidas heróicas de Marx e Lenine. Em Moçambique, surgem
os exorcismos contra os espíritos da guerra, em que fantasmas eram massacrados com
catanas e espingardas, prática imprescindível à reconciliação dos povos
divididos por um conflito fratricida. Os refugiados que, sedentos, se atiravam
às águas do rio Zambeze, sendo devorados pelos crocodilos que se ocultavam na
obscuridade. Ou uma mulher carregada de sacos que caminhava a pé com um bebé de
colo e que o informou, com a maior das naturalidades, que lhe faltavam
percorrer ainda 1.250 quilómetros para chegar a Maputo, o seu destino. Na
fronteira com a Tanzânia, o horror das centenas de cadáveres de ruandeses que
ficavam aprisionados num ponto preciso do rio Akagera, aquele em que as águas
faziam um remoinho poderoso. Em Memórias,
episódios como estes surgem de forma fugidia e passageira, pelo que seria
importante, até para registo futuro, que o fotógrafo acedesse a narrar com mais
detalhe, numa obra de maior fôlego e volume, as centenas ou milhares de
situações singulares com que certamente se deparou na sua vasta carreira.
Há
uma honestidade essencial no labor de Sebastião Salgado. Salvo em casos
extremos, como nos livros dedicados ao Sahel (Sahel, l´homme en détresse, de 1985, e Sahel, el fin del caminho, de 1988), exime-se a exibir a dor alheia
nos seus cambiantes mais sombrios e cruciantes, sabendo que o fotojornalismo
contemporâneo se encarrega de o fazer hoje em doses de tal forma excessivas que
já nem consegue despertar a sensibilidade de quem, parafraseando Susan Sontag, olha o sofrimento dos outros.
O
fotógrafo reconhece alguma margem de manipulação naquilo que faz. Por exemplo,
ao afirmar que procura traduzir as suas emoções «numa linguagem que não é real,
uma vez que o preto e branco é uma abstracção». Porventura, é nessa ambiguidade
entre o extremo realismo das situações que retrata e no modo «inautêntico» como
o faz que reside uma das chaves do seu sucesso. Muitas imagens de Génesis, por exemplo, com destaque para
as das majestosas montanhas cobertas de neve pura, provocam em nós a sensação
irreprimível de que o fotógrafo não quis retratar a Terra, mas antes um outro
planeta, fruto da sua imaginação poética e do nosso desejo de acreditarmos que
tudo aquilo realmente existe, numa acidental conjugação de quatro elementos tão
simples quanto essenciais: água, fogo, terra e luz.
É
difícil resistir à sedução e ao fascínio suscitados pelas paisagens
arrebatadoras de Génesis, sentimento
que, aliás, as reportagens de Salgado sempre despertaram. As imagens dos
formigueiros humanos no golden rush da
Serra Pelada são capazes de cativar emocionalmente milhões de pessoas porque,
em simultâneo, são trágicas mas surpreendentemente belas, sem jamais suscitarem
sentimentos de visceral repulsa ou consternação excessiva. Como ele refere, «ao
contrário do que acontece no cinema ou na televisão, a fotografia tem o poder
de produzir imagens que não são planos contínuos, mas cortes de planos. São
fracções de segundo que relatam histórias inteiras». Na verdade, a sedução das
imagens de Sebastião, como a de muitos outros, reside menos naquilo que mostra
mas no espaço que concede à imaginação de quem contempla, obrigado a adivinhar
o que existiu antes e logo depois do instante decisivo. Está consciente do
poder mágico, talvez xamânico, do corte de plano, aquilo que diferencia uma
imagem de Génesis de um documentário
da National Geographic.
Tal
não significa, naturalmente, uma confiança total no poder evocativo da imagem. Os
livros de Sebastião Salgado são acompanhados de textos, os quais, porém, são eminentemente
informativos e descritivos, concentrando-se o essencial da retórica nas
próprias imagens fotográficas. Às vezes, vai-se mais longe na combinação da
linguagem escrita e visual. Visando apoiar o Movimento dos Sem Terra e sendo
promovido pela associação Frères du monde,
o livro Terra, editado entre nós pela
Caminho, conta com uma introdução de José Saramago e versos de Chico Buarque; por
sua vez, o intróito de Trabalho,
igualmente publicado pela Caminho, foi escrito pelo fotógrafo em conjunto com o
escritor Eric Nepomuceno; e Mia Couto participou em África, obra com chancela da Taschen. Nada disso, porém, infirma a
ideia de que é na imagem, e apenas nela, que Sebastião Salgado naturalmente concentra
o fulcro do seu discurso. Daí a importância destas Memórias, que confirmam o acerto e a sensatez de tal opção. De
facto, quando vai além da fotografia, como aqui acontece, as afirmações que
produz são de uma impressionante vulgaridade, abundando frases como «a
fotografia é a minha vida», «para tirar boas fotografias há que ter muito
prazer em fazê-lo» ou «quando carrego o obturador, entrego-me inteiramente a
esse gesto».
Existe também uma dimensão, por assim
dizer, «religiosa» na sua obra, especialmente visível em Génesis (desde logo, no próprio título, obviamente). Dizendo-se
não-crente, porque partidário da teoria evolucionista de Darwin (como se essa
dualidade ou esse antagonismo ainda fizessem sentido…), Sebastião Salgado fala
de uma «harmonia original», que irmana todos os seres vivos, animais e plantas,
apoiando essa reflexão numa epifania ocorrida quando fotografava as iguanas das
Galápagos. As escamas das suas patas, diz-nos, assemelhavam-se de forma
surpreendente às couraças metálicas dos cavaleiros medievais, confirmando a
tese da existência de uma fraternidade cósmica entre todas as criaturas do
Génesis. Se olharmos além da trivialidade desta comparação, perceberemos que, com
efeito, muitas das suas imagens de evocam uma dimensão espiritual e pretendem
restaurar uma sacralidade perdida. E, de facto, o tremendo sucesso de Génesis e o frémito que provoca naqueles
que o contemplam beneficiam em muito do facto de vivermos numa época
pós-secular, ávida de referências transcendentes. Em 1994, o autor decidiu
rapar diariamente o cabelo e a barba, evitando a constante infestação de
parasitas, o que lhe conferiu o aspecto de um monge laico, austero e frugal,
imbuído de espírito missionário e firmemente convicto da superior virtude da
mensagem que proclama. A isto acrescem as menções, com contornos sacrificiais, às
agruras fundas do seu labor, realizado quase sempre em condições terrivelmente
adversas.
Génesis
foi apresentado como um poema épico dedicado à Terra, um hino ao planeta nas
suas múltiplas escalas, que vão do detalhe da pata de uma iguana à extensão
infinda de uma cordilheira encoberta por nuvens alvíssimas. A escala é o ponto central
da sua gramática, como aliás Salgado nos explica quando fala de um dos seus
primeiros grandes projectos, dedicado ao trabalho: não pretendeu abordar os
artesãos mas os que laboram em unidades industriais gigantescas; pouca ou
nenhuma atenção deu ao comércio ou aos trabalhadores dos serviços. O seu olhar incidiu
sobre os operários dos estaleiros de Gdansk ou os pescadores de atum da
Sicília, sobre os mineiros da Serra Pelada e, numa série impressionante, sobre
os trabalhadores de um matadouro industrial do Dakota onde se sacrificam 1.000
suínos por hora e 2.000 vacas por dia. No primeiro dia em que aí esteve, os
vómitos causados pelo cheiro nauseabundo impediram-no de fotografar. Os que aí
trabalhavam auferiam bons salários mas enfrentavam das piores condições
laborais que Sebastião viu em todo o mundo. Piores do que elas só talvez as dos
homens que, em Java, recolhiam enxofre no interior da cratera do vulcão Kawah
Ijen, recebendo cerca de 3,5 dólares por cada arriscadíssimo trajecto que
faziam entre fumos mortalmente tóxicos.
Mais do que uma versão aggiornata de grandes paisagistas como Carleton
Watkins, William Jackson ou Ansel Adams, mas ainda assim comungando do
panteísmo que os animava, Sebastião Salgado pretendeu com Génesis deixar-nos uma proclamação do seu amor mundi (a «minha homenagem à grandiosidade da natureza»,
escreve o autor no prefácio). O projecto, segundo refere nas Memórias, teve um efeito pedagógico:
obrigou-o a aprender a fotografar não-humanos e a respeitar a lentidão dos seus
ritmos, descobrindo ainda uma «racionalidade própria» em todas e em cada uma
das espécies animais que encontrou pelo mundo fora. No decurso deste trabalho,
empreendeu no Outono de 2008 aquela que considera ter sido a viagem da sua vida.
Na Etiópia, uma caminhada a pé de 850 quilómetros, que durou três meses. A caravana,
composta por quinze pessoas e dezoito burros de carga, retomou os passos do
Antigo Testamento (ponto que Salgado faz questão de assinalar), trilhando
caminhos que, segundo o fotógrafo, não eram percorridos há milénios. As cotas
mais baixas por que passaram situavam-se a altitudes entre os 1.000 e os 1.500
metros e, em três ocasiões, andaram acima dos 4.200 metros. A excursão, porém,
não dispensou o auxílio das mais modernas e sofisticadas tecnologias. A
caravana era guiada com o auxílio de um GPS e todos os dias Sebastião Salgado
utilizava o telefone por satélite para contactar a Géo-Découverte, empresa
suíça especializada em desenhar itinerários para cientistas e exploradores.
Logo a abrir estas Memórias, Isabelle Francq refere que
observar uma fotografia de Sebastião Salgado é «experimentar a dignidade
humana». Este «humanismo» prolonga a tradição da foto-reportagem, revisitando aproximações
como as de Walker Evans ou Dorothea Lange e a linha exibida por Steichen em The Family of Man, mas situando o olhar,
e a ética que lhe subjaz, num contexto planetário. Formalmente, busca-se a
depuração total, muito evidente em Génesis,
que acentua os contrastes do preto e branco para explorar à exaustão as
tonalidades do cinzento, sendo estas últimas que desempenham o papel central na
definição do relevo das formas e dos contornos – como, aliás, Salgado sublinha
nas suas Memórias, referindo ainda
que a sua opção pelo preto e branco lhe trouxe não poucas dificuldades,
designadamente quando se fixou em territórios completamente brancos, como a
Antárctida ou a Sibéria. O resultado final, aqui com noutros trabalhos, é
indubitavelmente a different light,
título da mais completa monografia sobre o fotógrafo, escrita por Parvati Nair
e publicada em 2012.
Sebastião Salgado concluiu Génesis aos 70 anos de idade. Confessa
que esse trabalho o reconciliou com a humanidade, após a terrífica experiência
de Êxodos: «em Êxodos enfrentei o lado mais severo e violento da nossa espécie e pensei
que a espécie humana jamais poderia aspirar à salvação. Ao realizar Génesis, mudei de opinião». A transição do
analógico para o digital, feita em 2008, no decurso desse projecto, processou-se
sem problemas de maior, até porque o fotógrafo e os seus colaboradores, num
esforço de grande complexidade, mantiveram muitos dos métodos e dos formatos
tradicionais. Até 2004, Salgado operava com câmaras Leica e película Tri-X 400,
em formato 24 × 36, tendo passado a trabalhar entre 2004 e 2008 com câmara
Pentax 645 em formato 4,5 × 6. Em 2008, a Canon emprestou-lhe a sua câmara mais
sofisticada, a 1 Ds Mark III e isso convenceu-o a adaptar-se à nova tecnologia,
que para mais tem incomensuráveis vantagens logísticas num tipo de trabalho
como o seu. Ainda assim, confessa-se incapaz de seleccionar imagens num
computador, pelo que não prescinde da realização de provas de contacto
impressas a jacto de tinta, que Sebastião Salgado examina à lupa, após o que os
seus colaboradores realizam cópias de leitura em 13 × 18 e, depois, cópias em
24 × 30. Para ele, as provas de contacto continuam a ser essenciais para, em
estúdio, reviver o episódio passado a milhares de quilómetros dali. Trata-se de
uma observação interessante para quem enaltece a singularidade da fotografia
como um corte de planos. É que, na verdade, mesmo o corte de planos não
dispensa, quanto mais não seja ao nível da selecção e da escolha, a sucessão de
imagens captadas no mesmo momento. Mais do que isso: se cada fotografia é, em
si mesma, um corte de planos, um projecto fotográfico, como aqueles que
Sebastião e Lélia concebem, implica uma sequência e uma coerência internas, uma
unidade de sentido. Quando folheamos um livro de Sebastião Salgado,
apercebemo-nos com mais clareza desta dimensão «fílmica» das suas intervenções.
O seu êxito reside também nesse equilíbrio entre unidade e diversidade. As
imagens agregam-se em torno de um denominador comum, o leit-motiv que permite falar de um «projecto»; mas, em simultâneo, afluem
de todas as partes do mundo. Podemos assim contemplar uma realidade como «o
trabalho», por exemplo, seja através de dezenas de imagens, ordenadas e
observadas sucessivamente, seja através de uma só imagem – a do pescador
siciliano que se prepara para La Mattanza
do atum mediterrânico ou a do operário chinês de uma fábrica de bicicletas.
Sebastião e Lélia Salgado sabem aproveitar, como poucos, as imensas
potencialidades – estéticas e visuais, políticas e comerciais – de um
«projecto», em que as fotografias são colocadas em conjunto e vistas em
sequência, quer percorrendo as salas de uma exposição, quer folheando as
páginas de um livro impresso em papel couché.
A heterogénea origem das imagens, vindas de pontos muito distantes entre si,
acentua a noção de diversidade, a qual, por sua vez, é comprimida e adquire
consistência ou sentido graças ao «tema» que as unifica.
Habituado
a trabalhar sozinho, em muitas reportagens de Génesis, até por razões de segurança, fez-se acompanhar de um
assistente. O tempo de maturação dos seus projectos (Êxodos, por exemplo, demorou seis anos a realizar) e até o conteúdo deste seu trabalho
fazem adivinhar que Génesis marcará a
etapa final da sua carreira. É legítimo especularmos se este projecto não terá
sido concebido precisamente como a sua derradeira obra, em jeito de testamento
vital ou testemunho esperançoso. Antes de o casal Salgado se lançar nesta
empresa, a Conservation International, a maior ONG de conservação ambiental do
mundo, forneceu-lhe estatísticas animadoras: aproximadamente 46 % da superfície
do planeta permanece intacta; 99,9 % da Antárctida continua virgem; a floresta
amazónica, em 75 % da sua extensão, não está ainda afectada. Foi toda essa terra incognita que Sebastião pretendeu
desvendar diante dos nossos olhos. Não trabalhou na Europa, porque aí
praticamente não resta qualquer lugar intacto. Em contrapartida, deteve-se no
arquipélago chileno de Diego Ramírez, situado entre o cabo Horn e a Antártida,
indo depois para as Malvinas, para a ilha Geórgia do Sul e para as ilhas
Sandwich do Sul, que alojam o maior santuário mundial de pinguins selvagens e
onde um vulcão permanece activo. O fotógrafo chama-lhes «ilhas do fim do mundo»
e refere que é aí que os ventos dão meia-volta. Vão até lá, a um arquipélago
situado nos confins do mundo, e depois regressam até nós, soprando com
redobrada força. Mais do que as suas Memórias,
talvez seja esta a imagem que melhor descreve a vida e a obra de Sebastião
Salgado Júnior.
Texto
publicado no Observador, em 14 de Junho de 2014
António Araújo