sábado, 31 de maio de 2025

Como mudamos as nossas ideias, o ponto de vista do grande escritor Julian Barnes.

 


 

Não ficarei surpreendido se este escritor original, habitualmente bem-humorado, sempre tematicamente surpreendente vier a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura num dos próximos anos. Mas surpresa também é o aparecimento deste conjunto de ensaios com o título Mudar de Ideias, Quetzal Editores, 2025. É uma recolha de um conjunto de ensaios e pequenas palestras inicialmente pensadas para uma emissão de rádio. Acontece que todo este conjunto é de uma solidez impressionante, não lhe falta o tom confessional, a observação mais do que arguta e o entendimento do todo feito de alguns olhares dispersos.

Mudamos, porquê? Pelos fatores circunstanciais, por exemplo o amor, a paternidade, a morte dos que nos são próximos, no turbilhão das emoções as nossas ideias mudam. E, atenção, o peso da memória poderá ser determinante, até porque a perceção da nossa memória também varia. “Concordo com a noção de que a memória, a memória de uma única pessoa, sem corroboração e sem fundamentação através de outras provas, é um fraco guia para o passado. Penso que estamos constantemente a reinventar as nossas vidas, recontando-as de acordo com os nossos interesses. Creio que a operação da memória está mais perto de um ato de imaginação do que do da recuperação limpa de um acontecimento do nosso passado.”

Seria totalmente descabido que um escritor como Barnes não reconhecesse que as palavras são a maneira como se constróis a imagem no mundo exterior, real e ficcional. Como é evidente, ele foca-se na língua inglesa, não acredita no absolutismo linguístico. “Deixei de acreditar numa Idade de Ouro da linguagem, numa qualquer correspondência entre palavra e coisa. Nem aceitei o mito da decadência linguística. Acabei por crer que a linguagem era e é frequentemente uma aproximação, que as palavras significam apenas o que em geral nós concordamos que significam. Os gramáticos que tentam a impor a gramática a uma língua em movimento, forçá-la a recuar até uma falsa pureza de estrutura original, estão sempre na posição de perdedores.” E tece um comentário luminoso sobre a língua em que ele trabalha as suas obras: “A língua inglesa é – tem sido sempre – um animal arraçado: é em parte daí que vêm o vigor, a energia e a maleabilidade que revela. A sua porosidade às línguas e dialetos de outros países de língua inglesa age como uma permanente transfusão de sangue. Qualquer escritor nascido no seio da língua inglesa tem muita sorte: não só pelos muitos leitores potenciais que existem, mas também pelas próprias palavras com que ele ou ela podem brincar – brincar seriamente.”

E assim chegamos, questão delicada, às nossas mudanças políticas, e, convenientemente, lembra-nos o mundo da sua infância. “Eu cresci naquele tipo de família inglesa de classe média, pacata, em que a política – como a religião e o sexo – quase nunca era mencionada. Isto não quer dizer que os meus pais não tivessem opiniões políticas. A minha avó materna, por exemplo, era uma metodista que se tornou socialista, depois comunista, sendo que – facto mais original de todos, especialmente no frondoso Buckinghamshire – acabou por apoiar os chineses em detrimento dos russos quando se deu a grande cisão sino-soviética. Entretanto, o meu avô era decididamente conservador. Nunca discutiam as suas posições um com o outro – há muito que tinha sido estabelecido uma trégua.” Barnes dá as suas explicações quanto às suas mudanças de voto, mas não esconde os vetores de um sistema político com que se sentiria identificado, o que deve constituir propriedade pública, a mudança no funcionamento parlamentar, o regresso à União Europeia, investimento maciço no SNS, absoluto compromisso a favor do carbono net zero mais cedo do que os outros países; e alonga-se: a tutela dos serviços prisionais deve voltar ao Estado, legislação sobre a morte assistida, nos meios de comunicação todos os colaboradores devem ser imediatamente identificáveis, completa reintrodução de todas as artes e humanidades nos cursos escolares e universitários. O escritor não é peco a pedir, vê-se à légua que se rege pelo Bem-comum e trata com clareza as meditações mais pesadas.

Era inevitável, vai falar de livros, do que leu em jovem e agora já não gosta, porque às vezes mudamos de opinião acerca de um autor. Tece um inesperado e admirável elogio aos romances de Georges Simenon, gostava dos livros policiais e graças a uma amiga e grande escritora, Anita Brookner, leu os romances não policiais, são aproximadamente duzentos, ganha-lhe paixão. Concentra a sua atenção num outro escritor, E. M. Forster, ironiza: “Não me arrependo das décadas que passei sem conseguir apreciar Forster. Reler seria uma coisa entediante e complacente se resultasse invariavelmente na pura e simples confirmação daquilo que já achávamos. E o prazer de perceber que estávamos errados pode constituir um prazer genuíno. No entanto, como podem imaginar, esta experiência fez-me reconsiderar alguns juízos apressados da minha juventude.”

Todas estas belíssimas elucubrações terminam com a idade e a apreciação do tempo. Sabe muito bem o que é que não mudou de opinião ao longo da vida adulta, com destaque: a primazia do amor; a primazia da arte e a convicção de que a literatura corresponde ao melhor sistema que temos para compreender o mundo; à certeza de que a morte leva ao esquecimento absoluto e interno, que existe uma coisa chamada sociedade. Temos então que nos confrontar com o tempo, é de novo espirituoso: “Essencialmente, vivemos como amadores trôpegos num universo profissional em grande parte incompreensível. Certa vez pediram a Einstein para explicar a relatividade de maneira até que os jornalistas a pudessem entender. ‘Uma hora sentados com uma rapariga bonita no banco de um parque passa como se fosse um minuto’, afirmou. ‘Mas um minuto sentado num fogão a escaldar já nos parece uma hora. A relatividade é isso.” E, mais adiante: “Uma vantagem de sermos adultos é que o tédio atual em nada se compara ao tédio da infância e da juventude. Quando era criança, não pensava na forma como a idade e o tempo funcionavam para os adultos. O que ludibria a criança, e compreensivelmente, é o facto de a vida futura parecer encontrar-se previsivelmente demarcada por uma série de datas e idades em que as coisas devem acontecer. A criança distingue com rigor entre ter 6 anos e meio e 6 anos e três quartos. Já o adulto adota uma perspetiva mais a longo prazo, assinalando as coisas por décadas. Como realista cético que sou, considero que temos precisamente a idade que a carta de condução e o passaporte asseveram que temos.”

Creio que esta obra literária é empolgante, sincera e corajosa, não se pode ser leviano a tecer considerações sobre as mudanças da nossa linguagem, porque é que se votou em partidos diferentes, como cada uma de nós relê e reavalia alguns dos livros marcantes da nossa existência, e também a observação que faz sobre o modo como pensamos o tempo e como ele evolui, podendo gerar sabedoria ou um profundo ressentimento.

Imperdível, prosa luminescente.

 

Mário Beja Santos

 

 


sexta-feira, 30 de maio de 2025

A desdita dos comandos africanos da Guiné na labiríntica historiografia pós-colonial.

 

 



Para me licenciar em História, aprendi que esta é a ciência do Homem no tempo, tempo que tem um antes, um durante e um depois, o investigador compulsa a documentação, pode socorrer-se de depoimentos escritos ou orais, em caso algum pode encobrir provas ou manejá-las de modo que a sua narrativa esteja em plena concordância com as acusações que comportam os recados que aparentam corresponder à clara certidão da verdade.

Os fuzilamentos dos comandos guineenses que combateram do lado português continuam a ser matéria fraturante, pasto de trabalhos que no fundo pretendem demonstrar como a nossa descolonização foi caótica, praticou injustiças, deixou um estendal de misérias. Sofia da Palma Rodrigues doutorou-se sobre este tema, ouviu velhos antigos combatentes, responsabiliza as autoridades portuguesas que acompanharam o prescrito pelo Acordo de Argel, e as subsequentes de desleixo criminoso, abandonaram, afinal, à mercê dos rancores do PAIGC homens que tinham sido valorosos a combater pela soberania portuguesa. É uma crítica acintosa, um uso atrabiliário da bibliografia e de diferentes fontes documentais, assim se escreve Por ti, Portugal, eu juro! A história dos comandos africanos da Guiné, por Sofia da Palma Rodrigues, Edições Tinta-da-China, 2024.

De acordo com o que se escreveu nos volumes dedicados à Guiné na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, publicados pelo Estado-Maior do Exército, em 1969, o governador e comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, António de Spínola, concebeu uma força especial de comandos e fuzileiros, que deu origem a três companhias de comandos e duas de fuzileiros, as primeiras vieram a agrupar-se no chamado Batalhão dos Comandos Africanos. Fez-se uma seleção por recrutamento voluntário de gente que veio dos pelotões de caçadores nativos, das forças das milícias, sobretudo. Está comprovado que as autoridades do PAIGC, o presidente Luís Cabral e os políticos do seu círculo, foram inteiramente responsáveis pelos crimes perpetrados após a independência, perseguindo, prendendo, torturando e fuzilando elementos dessas forças especiais, tanto dos comandos como dos fuzileiros, e mentindo descaradamente, forjando intentonas ou dizendo nada saber sobre estes fuzilamentos. Nos diferentes livros que escreveu, nas entrevistas que deu, Luís Cabral negou sempre conhecimento dessas matanças. Só que os seus colaboradores têm vindo a escrever que as coisas não se passaram assim. Veja-se o que disse Manecas Santos num livro também publicado em 2024 intitulado Uma biografia da luta, Rosa de Porcelana Editora, página 113:

“Pouco tempo após a independência, talvez por volta de 1976, Luís Cabral foi passar férias à Suécia. No regresso, fez uma paragem em Lisboa. Tinha boas relações com Ramalho Eanes que o convidou para um jantar. Durante a conversa, Eanes falou-lhe de um conjunto de militares, antigos efetivos do exército colonial, que ainda estavam detidos na Guiné. Fez-lhe um pedido: que fossem devolvidos a Portugal, mediante a sua garantia pessoal de que não se envolveriam em qualquer intriga posterior contra o PAIGC ou o Estado da Guiné-Bissau.

Luís concordou. Assim que chegou a Bissau, convocou o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Umaru Djaló; Nino Vieira ministro do Interior; e António Alcântara Buscardini, chefe dos Serviços de Segurança do Estado. Informou-os sobre o acordo feito com Eanes e solicitou que providenciassem os documentos de viagem necessários para o regresso a Portugal dos militares em questão.

Foi então que Buscardini, com toda a desfaçatez, informou o presidente que os soldados que tinha prometido devolver já tinham sido executados. Ou seja, Buscardini tinha tomado individualmente uma decisão que punha em causa a palavra do chefe de Estado perante um homólogo; e tinha cometido uma violência contra os prisioneiros que teria sido impensável para o PAIGC, mesmo durante as hostilidades da luta armada.”

Esta é a versão de Manecas Santos, acontece que Luís Cabral, por mais uma vez, falou em tribunais e em tentativas de complô feitas pelos comandos, teria sido a justiça a decidir o seu fuzilamento. Como se sabe, não há uma só prova de qualquer envolvimento de comandos e fuzileiros em complôs e sabe-se que os fuzilamentos se prolongaram até finais de 1977.

Esta ilustre doutora diz abertamente ao que vem: “Este livro foca-se na recolha de testemunhos que põem em causa as narrativas oficiais que tanto Portugal como a Guiné-Bissau escolheram contar sobre si, e sobre os relatos de pessoas que foram cuspidas para fora de ambos os projetos políticos.” Por outras palavras, os historiadores, na plenitude andam a mentir. Por vezes diz coisas sem qualquer fundamento, como dizer que o PAIGC dominava já mais de metade do território quando Spínola se viu obrigado a apostar nos militares africanos e a dar-lhe funções de maior importância no Exército. É facto que Spínola apostou fortíssimo nestes comandos, eles foram utilizados para as operações mais arrojadas, fizeram muitas vezes vacilar os guerrilheiros do PAIGC e as populações por ele dominadas. Chegaram a ser cruciais em momentos em que se previa a hecatombe, como no cerco a Guidaje, em que os comandos entraram no Senegal e puseram o PAIGC em pânico, em Cumbamori.

Se esta historiografia pós-colonial servisse para pôr esta situação em pratos limpos, ouvir-se-iam aqueles que estiveram a pôr em execução o Acordo de Argel. A senhora doutora nunca refere as conversações travadas pelo brigadeiro graduado Carlos Fabião com os oficiais e sargentos dos comandos e dos fuzileiros, Fabião já faleceu, mas deixou depoimento do que fez e como fez. Nem uma palavra. O PAIGC aceitou incorporar todas as forças militares que combatiam do lado português, não cumpriram. Naquele vendaval de acusações que a doutora faz ao comportamento das autoridades portuguesas, não há nem uma palavra sobre a atmosfera que se viveu em Portugal, particularmente a partir do 11 de março, em que os spinolistas entraram em debandada. Era igualmente compreensível que na análise da situação concreta que se vivia nas conversações entre as autoridades portuguesas e as do PAIGC, estas apelassem à desmobilização das forças especiais, temiam que com a saída dos portugueses se gerassem focos de guerra civil. Valia a pena que a doutora tivesse procurado a documentação desta época nos arquivos da Defesa Nacional e não se limitasse a dizer que Glória Alves, o 2º comandante do Batalhão de Comandos afirmara que os guineenses tinham retirado o seu nome da lista que fora proposta por Fabião para virem para Portugal, fala também em Florindo Morais, mas diz que estes dois responsáveis não eram capazes de garantir como o processo aconteceu e recorre-se de interrogações: “Foram mesmo todos os que tinham o nome na lista a desistir? Houve alguém a precipitar esta decisão? O que terá levado estes militares a deixarem de querer ir para Portugal?” Será isto maneira de fazer historiografia? Andou a fazer entrevistas aos comandos africanos e esta questão não era importante?

Chegámos por fim ao mau da festa, Almeida Santos, que escreveu e promulgou o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de junho, que previa que só conservariam a nacionalidade os cidadãos portugueses nascidos em África que tivessem pais, avós ou bisavós com linhagem europeia goesa. Nem uma palavra para a avalanche de retornados que começavam a afluir, nenhum partido político ao tempo contestou a necessidade desta legislação e, como é sabido, daí por diante, nenhum governo alterou a essência deste princípio da nacionalidade. É facto que se devia ter a seu tempo agido em nome do artigo 25º do anexo do Acordo de Argel, mas, como também é sabido, é assunto face ao qual nenhuma governação quis tratar por via diplomática pelas autoridades da República da Guiné-Bissau, a partir da Resolução do Conselho de Ministros nº18/83 em que se definiu que o pagamento das pensões seria transferido para o Estado da Guiné-Bissau, em troca Portugal perdoaria uma dívida de juros vencida no valor de 200 milhões de escudos. O que será que a senhora doutora queria, que cortássemos relações com a Guiné-Bissau por não cumprir com o estipulado?

Fuzilamento de comandos guineenses matéria fraturante? Sim, enquanto faltar historiografia que busque com rigor o tratamento das fontes e trate com a devida prudência as lacunas e omissões da História oral. Livro que não convence.

 

                                                                                     Mário Beja Santos


quinta-feira, 29 de maio de 2025

São Cristóvão pela Europa (309).

 

 

 

Na cidade espanhola de Cória, a igreja de Santo Inácio, inaugurada em 1959, contem uma imagem de São Cristóvão.

 



  

Na Catedral, a grande relíquia é apresentada como a toalha da Última Ceia. De origens misteriosas, o que se pode confirmar é ser realmente muito antiga e proveniente do Oriente.

Existe também um pendão processional alusivo ao nosso Santo.

 




 

                            Fotografias de 9 de Maio de 2025

                                                            José Liberato




quarta-feira, 28 de maio de 2025

Obra de referência sobre os últimos anos do colonialismo português.

 



 


 

Publicado em novembro de 2024, pela Bertrand, Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização, coordenado por Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges, este volume de quase oitocentas páginas, que reúne a colaboração de mais de três dezenas de autores, destina-se a familiarizar o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca das guerras coloniais de Portugal. Beneficia, naturalmente de avanços historiográficos facilitados pela abertura dos arquivos portugueses. “Instituições como o Arquivo Histórico Militar e o Arquivo da Defesa Nacional têm recebido, nos últimos anos, significativas incorporações, e funcionam segundo normas que, em geral, se alinham com as políticas de acesso arquivístico mais abertas no plano internacional. Como a história das guerras coloniais não se cinge apenas à sua dimensão militar e operacional, outros arquivos têm sido procurados pelos investigadores, com destaque para os acervos depositados nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo e nos Arquivos Histórico-Diplomático e Histórico-Ultramarino. A isto teremos também de acrescentar toda uma pletora de arquivos internacionais, que tanto inclui os antigos aliados ocidentais de Portugal como os de vários ex-satélites da URSS que a partir de 1990 adotaram regras mais abertas no tocante aos acervos dos seus serviços diplomáticos e de inteligência (como a República Checa), ou a constelação de países do agora chamado Sul Global que desempenharam papel de relevo na solidariedade e apoio aos movimentos independentistas das colónias portuguesas”.

Vejamos, em síntese, a estrutura da obra. A primeira parte intitula-se “Enquadramento”, aqui se procura estabelecer um quando contextual das guerras coloniais portuguesas em termos políticos, estratégicos e militares; a segunda parte denomina-se “Economia e Sociedade”, aqui explora-se a dimensão económica das guerras e os seus impactos sociais; a terceira parte obedece ao mote “Mobilização, Luta e Propaganda”, procura familiarizar os leitores com diversos aspetos da conduta do conflito, numa visão que procura conciliar uma abordagem analítica e algum sentido cronológico; “Dor e Sofrimento” é a quarta parte, aqui se enunciam os aspetos mais dolorosos do conflito, aqueles que resultam das baixas em operações militares, atrocidades, situações de cativeiro. A quinta e última parte é “Fim do Império”, são duas sínteses sobre as vicissitudes deste processo, primeiro na metrópole e em África, e depois nos territórios onde o nível de empenhamento militar português foi comparativamente menor do que em África, mas nem por isso menos gerador de consequências dramáticas, basta recordar Timor.

Sendo totalmente inviável alargar comentários a todos os diferentes comentários, vejamos, a título meramente ilustrativo o modo como os investigadores abordaram certos temas:

“Insistir na tese da vitória traída pode ser politicamente conveniente ainda hoje, mas é insistir em não querer perceber que uma guerrilha não ter por objetivo uma vitória convencional. Ela aposta na atrição prolongada da vontade de combater de um inimigo à partida muito mais forte. As guerrilhas independentistas sabiam não ser realista, nem tiveram como objetivo marchar sobre Lisboa, Paris ou Londres, pois não precisavam disso para atingir o seu objetivo estratégico: transformar o colonialismo num ativo tóxico na política internacional e demasiado custoso em vidas e despesas para ser viável a prazo na política interna das potências colonizadoras.”

“Ponto determinante foi a incapacidade de o poder político transmitir às suas Forças Armadas o que pretendia delas, isto é, o que considerava uma vitória e qual o seu objetivo. Esta incapacidade está plasmada nas cartas de comando entregues pelo Governo aos generais quando os nomeava comandantes-chefes. São todas elas idênticas e do tipo de ordens gerais: manter a ordem no território, colaborar com as autoridades civis e assegurar a relação pacífica entre os habitantes. Com esta latitude de objetivos cada general deduziu a sua missão. E daí cada um ter agido de acordo com a sua análise.

A perda da vontade de combater é uma das condições para o fim de uma guerra. Os capitães preferiram derrubar o regime, antes que o regime fizesse dele os bodes expiatórios da sua incapacidade, como acontecera na Índia. Preferiram defender o seu povo antes que o regime levasse o povo à exaustão.

O 25 de Abril de 1974 também resulta do sentimento de desconfiança dos militares relativamente ao poder político da ditadura do Estado Novo e dos seus dirigentes.”

No ensaio dedicado à estratégia e liderança do Conselho Superior de Defesa Nacional, abordando-se a situação na Guiné no período que vai de novembro de 1969 a maio de 1973, escreve-se:

“A situação na Guiné era a mais crítica. Na reunião de maio de 1971, Spínola deixou claro não ser possível vencer militarmente, levantando forte oposição dos ministros da Defesa e do Ultramar, que preconizavam a possível solução política teria de ter uma vitória no campo militar. Para Spínola, a solução ultrapassava largamente a possibilidade de uma vitória militar, e apenas no quadro de uma plataforma diplomática e política era possível encontrar uma solução de fundo para a Guiné. Qualquer solução que fosse orientada para a vitória militar tinha apenas como consequência e exaustão de recursos humanos, materiais e financeiros. Sem demonstrar aberta concordância com Spínola, Caetano considerava que o esforço financeiro suportado era muito elevado e não tinha a certeza de que a economia do país pudesse continuar a suportá-lo por muito mais tempo.”

Abordando a condição em que ficaram os combatentes africanos que tinham sido leais a Portugal, vejamos o que se escreve sobre a Guiné:

“O elevado número de guineenses ao serviço de Portugal, a sua reconhecida destreza militar, e a própria notoriedade alcançada por muitos deles num território com aquelas dimensões, tornava o PAIGC particularmente receoso quanto à desmobilização daqueles elementos. O seu desarmamento começou a ser feito a partir de 19 de agosto, imediatamente após o acordo de independência, sob a supervisão do brigadeiro Carlos Fabião. Esse processo deveria ter lugar contra o pagamento de seis meses de salário e uma guia de marcha que habilitaria os antigos combatentes a apresentarem-se ao serviço nas Forças Armadas do Novo Estado, a partir de janeiro de 1975. A possibilidade de os militares guineenses das Forças Armadas portuguesas, na qualidade de cidadãos da República da Guiné-Bissau, serem elegíveis para o pagamento de pensões de sangue, invalidez e reforma por parte do Estado português estava previsto no Acordo de Argel, mas nos anos seguintes nenhum programa completo para concretizar essa promessa seria implementado. A queda em desgraça do setor spinolista da Revolução, na sequência dos acontecimentos do 11 de março de 1975 em Lisboa, trouxe graves consequências para estes elementos, particularmente para os que se tinham distinguido em unidades de operações especiais. Os serviços de segurança do novo Estado, organizados por elementos formados na URSS, RDA e Checoslováquia, terão sido instrumentais na identificação e eliminação de vários ex-comandos. Dados revelados em 1980, mencionam 53 fuzilamentos ocorridos em 1965, mas as matanças conheceriam um novo pico em 1978, a propósito de rumores que apontavam para o envolvimento de antigos elementos do Exército colonial num alegado golpe de Estado liderado por Malam Sanhá, um ex-comando.”

Livro essencial, portanto.

 

                                                        Mário Beja Santos


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Os cuidados informais à espera de um amplo consenso nacional, e não só.

 

 


  

Quem Cuidará de Mim, ensaio de Ana Paula Gil para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, não ilude que toda a problemática dos cuidados informais espera por maior atenção e resposta eficiente face a desafios demográficos, territoriais, económicos, familiares e sociais de grande envergadura, o decisor político não pode continuar a passar ao lado dessa bomba-relógio que se chama o envelhecimento.

Este ensaio, se bem que centrado num leitor de algum modo selecionado, pretende contribuir para uma melhor compreensão dos cuidados informais, identifica as problemáticas sociais que estão associadas a quem cuida, é matéria muito mais extensa do que aquela que cabe nas medidas de política de saúde e solidariedade social. Põe-nos a refletir sobre o significado de cuidar, algo que abarca mais a mulher do que o homem, matéria dinâmica que não pode abstrair da complexidade das relações familiares; é facto que há hoje muito mais reflexão quanto ao reconhecimento social de quem presta cuidados, releva a maior longevidade, o crescimento contínuo de indivíduos com mais de 80, 90 e 100 anos. A autora observa: “A disponibilidade dos cuidadores informais está dependente não só das mutações sociais das estruturas familiares que ocorrem atualmente na sociedade portuguesa, como também das políticas públicas de cuidados de longa duração, o que vai obrigar a reequacionar o atual modelo de cuidados para a população idosa em Portugal.” Pelo que nos é dado ver, o decisor político ainda não se afoitou a encontrar um puzzle de soluções para a crise global dos cuidados, aos cuidados formais, requerem profissionais qualificados, importa alargar a prestação de cuidados no domicílio, dignificar o cuidador informal, o país já possui legislação, mas esta é manifestamente dececionante.

A autora discreteia sobre a necessidade de rever o conceito de cuidar (por exemplo, a responsabilização dos cuidados centra-se na mulher), em cuidados de longa duração há que procurar investir na aptidão de vários familiares em simultâneo, no novo quadro de articulação com o cuidar na esfera pública, o que levanta a questão dos encargos orçamentais. Recorda a autora que nos países da OCDE, em 2021, despendeu-se 1,8% do PIB em cuidados de longa duração, há países como os Países Baixos com 4,4% ou Portugal com 1% do PIB. E daqui partimos para a crise global do cuidado: escassez de mão de obra, as mudanças sociais, a necessidade crescente de serviços personalizados (que nos países do chamado mundo ocidental conhecem alívio com o concurso dos imigrantes). A longevidade tudo alterou, acontece que o aumento de esperança de vida com incapacidade está associado ao surgimento de doença crónica e à multimorbilidade, com realce para a doença cardíaca, os acidentes vasculares cerebrais, a diabetes e as doenças degenerativas (as demências), podendo-se concluir que vivemos mais tempo, mas à medida que as pessoas envelhecem a proporção dos anos de vida com incapacidade aumenta. E de novo as mutações nas estruturas familiares requerem ponderação, mas continuamos com zonas muito fluídas quanto à materialização de políticas que favorecem a conciliação entre trabalho e família, o mesmo é dizer que continua completamente em aberto a tensão entre a esfera laboral e os cuidados. E convém não esquecer que pelo caminho houve a fase pandémica da covid-19 que provocou efeitos devastadores nas práticas de cuidados em Portugal.

Ana Paula Gil elabora o retrato dos cuidadores informais em Portugal e versa depois as políticas de apoio aos cuidadores na Europa. Assim chegamos à análise do Estatuto do Cuidador Informal, feita em profundidade, revelando os aspetos mais salientes da insuficiência e da deceção que a lei confere. Por exemplo, “o não reconhecimento do trabalho de cuidado como trabalho efetivo – e, por isso, passível de proteção social de forma universal – tem contribuído para minimizar o seu papel e, sobretudo, olhá-lo como um dado adquirido assumido pelas mulheres”.

Em jeito de conclusão, a autora adianta o que de nefasto representa a inexistência de debate público sobre o que queremos, como queremos e com quem queremos viver o nosso envelhecimento com dignidade. “A pressão sobre o sistema de cuidados de longa duração será inevitável nas próximas décadas, e vai implicar um maior investimento no setor de cuidados, assim como o reequacionamento das políticas de apoio aos cuidadores informais. São necessárias políticas que permitam minimizar os impactos e possíveis riscos – por exemplo, as saídas do mercado de trabalho, a dependência financeira de outros familiares, ou o risco de pobreza -, quando se trata de um cuidado intensivo, como ainda apoiar os cuidadores no exercício do cuidado de trabalhos, sempre que estes se confrontem com a conciliação entre trabalho e vida familiar”. Um outro dado da realidade é a dignificação do cuidador formal, pois sem este reconhecimento avolumar-se-ão a desigualdades de género, mas também étnico-raciais, o mesmo é dizer precarização e mero desenrascanço do cuidado de trabalhos. ”Equacionar o cuidado como o produto da interceção entre bem-estar, emprego e migrações, ajuda-nos a compreender os desafios que estão associados à longevidade e ao envelhecimento da população, às desigualdades e à atual complexidade da diversidade social, bem como à digitalização da sociedade e à mudança climática. Por isso, os cuidados informações ganham centralidade nas sociedades contemporâneas.”

Oxalá os decisores políticos acolham com manifesta seriedade este aviso de alguém que investiga sobre temas de envelhecimento e respetivas políticas sociais, da família e das relações intergeracionais, bem como da saúde.

 

Mário Beja Santos


São Cristóvão pela Europa (308).

 

 

 

Tive recentemente ocasião de visitar brevemente a Província espanhola de Cáceres, em especial as cidades de Plasencia e Cória.

O centro histórico de Plasencia é notável e nele avulta a Catedral de Santa Maria. Particularmente tocante foi a minha visita ter ocorrido ao som do repicar dos sinos, tocando jubilosamente pela eleição do Papa Leão XIV.

 


No Palácio de las Argollas casou-se em 25 de Maio de 1475 o nosso Rei D. Afonso V com Joana filha de Rei Henrique IV de Castela e conhecida depreciativamente como a Beltraneja.

 


Em 1484 constitui-se o Convento de Santa Clara de Plasencia. Na sua igreja, um altar contém uma bela pintura de grandes dimensões representando São Cristóvão.



 


Na Igreja de São Martinho, românica e edificada no Século XIII, um altar em pedra contém uma imagem do nosso Santo.

 



 

                                             Fotografias de 8 e 9 de Maio de 2025

                                                                                     José Liberato





sexta-feira, 23 de maio de 2025

Sebastião Salgado (1944-2025).

 




 

          Publicadas originalmente em França, as Memórias de Sebastião Salgado foram editadas em 2014 em Espanha, com a chancela de La Fábrica. Intituladas em castelhano De mi tierra a la Tierra. Memorias, surgiram nas livrarias praticamente em simultâneo com a exposição que, no CaixaForum, esteve patente no coração cultural e turístico de Madrid. Salgado expôs aquele que, ao que tudo indica, será literalmente o seu último grande projecto, Génesis, iniciado em 2002 e só concluído ao fim de oito anos de trabalho e de 32 longas reportagens; em 2013, a Taschen deu-o à estampa em várias línguas, incluindo o português.

          O relato memorialístico de Sebastião Salgado foi feito com a colaboração de Isabelle Francq e, pelas palavras desta no prólogo, tudo indicia tratar-se do resultado de uma longa entrevista autobiográfica, em que aquele expôs à jornalista os diversos passos de uma trajectória que culminou na sua elevação ao estrelato de celebridade mundial. Sebastião Salgado é, muito provavelmente, o fotógrafo mais conhecido e mais popular do nosso tempo.

Também no Brasil, a editora Paralela publicou estas memórias, com o título Da minha terra à Terra, frase que sintetiza, mais do que uma vida, a imagem que dela se quer projectar. Aí sobressai a transição das origens num território já de si vastíssimo para um ponto de vista que pretende abarcar o planeta inteiro, com especial ênfase nos seus lugares mais remotos, sejam cálidos ou gélidos. Tal passagem – da terra à Terra – foi possível devido à imensidão do país de nascimento e também, ou acima de tudo, ao facto de Salgado professar uma inabalável fidelidade às suas raízes, declarando que sem elas jamais teria sido possível operar actualmente a uma escala tão ampla. Se o centro da sua longa marcha rumo à consagração como fotógrafo global principiou na Europa, Sebastião Salgado, que conheceu anos de exílio e chegou a obter a cidadania francesa, reclama uma brasilidade profunda, quase atávica e mística, em que a Terra só foi conquistada devido à sua lealdade à terra, ao lugar a que regressou para criar uma organização denominada, não por acaso, Instituto Terra, dedicado à reflorestação da mata atlântica, «utopia feita realidade» que já plantou dois milhões de árvores com o apoio do Banco Mundial, do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade e de grandes empresas, como a companhia mineira Vale do Rio Doce e a cosmética brasileira Natura, ou de fundações privadas francesas, como Nature & Découverte, Yves Rocher, Aventis Pasteur ou Anne Fontaine. Também a Taschen contribui para o sucesso do Instituto Terra.  

A esta luz, a específica génese de Sebastião Salgado, pessoalíssima e intransmissível, explicaria todo o caminho que, décadas depois, teria o seu apogeu em Génesis. Afirma que sempre possuiu «a sensação de ter crescido no paraíso», culminando a sua carreira com uma obra em que a referência ao Éden vai muito para lá do título. Ao exaltar daquela forma tão intensa a influência das suas origens, o fotógrafo, consciente ou inconscientemente, relega para um plano secundário, como que descartável ou meramente acidental, o facto de só graças à congregação de recursos materiais absolutamente invulgares ter podido desenvolver projectos de uma duração e de uma envergadura a que muito poucos podem aspirar. Por outras palavras: se, no plano imaterial, do afectivo e do imaginário, Minas Gerais foi a fons et origo da sua obra, esta nunca teria visto a luz sem uma eficientíssima gestão de carreira e de meios, realizada com base em Paris.   

          A estrutura desta obra relativamente breve, com cerca de 160 páginas, encontra-se ordenada segundo um critério cronológico, o que, a par da fluidez e da simplicidade da escrita, muito contribui para facilitar a sua leitura. Para mais, Sebastião Salgado evita tecer considerações «intelectualistas» sobre a sua arte ou, como decerto preferirá chamar-lhe, sobre o seu trabalho. O livro assume, assim, características predominantemente autobiográficas, entrecortadas aqui e ali por observações de índole ideológica extremamente difusas e até mesmo francamente banais. A obra vale, pois, enquanto reconstrução linear do percurso de um dos maiores – ou, pelo menos, dos mais conhecidos – fotógrafos da actualidade. A riqueza e a diversidade da sua vida encontram-se palidamente reflectidas neste pequeno livro, que não representa ainda, de modo algum, a biografia «definitiva» de Sebastião Salgado. No entanto, como o fotógrafo trabalhou frequentemente sozinho, passando largos períodos em extremos longínquos sem a presença de colaboradores ou outras testemunhas, e como os episódios que viveu e as pessoas que conheceu dificilmente poderão ser resgatados sem a sua intercessão, será difícil, ou quase impossível, escrever uma biografia de Sebastião Salgado que não se atenha a aspectos decisivos (as agências, os contactos, os prémios, as redes das indústrias da cultura) mas algo extrínsecos ao essencial. Um essencial que é este: a retina dos seus olhos e as objectivas das suas câmaras viram e captaram o mundo no que este encerra de mais horrível e de mais belo, ou seja, nos graus mais superlativos que possamos conceber.  

          Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu em 1944 no Estado de Minas Gerais, numa fazenda situada no interior do vale do Rio Doce, um território que, como faz questão de lembrar, tem uma superfície idêntica à de Portugal. A questão da escala da terra, surgida logo nesta observação feita en passant nas primeiras páginas do livro, virá a desempenhar um papel crucial em toda a obra do fotógrafo.

          Filho de um fazendeiro relativamente abastado, sobretudo para os padrões do Brasil rural da década de 40 (na fazenda, auto-suficiente, viviam cerca de 30 famílias), Salgado apresenta a sua infância e primeira juventude como um tempo idílico em que, convocando de novo a questão da escala, percorria sozinho milhares de quilómetros, cobrindo distâncias equivalentes à que separa Paris de Moscovo. Naquele vale tão verde, ninguém era rico e ninguém era pobre. Vivia-se num comunitarismo pré-industrial que desconhecia a desigualdade ou as assimetrias de riqueza e que, recorda Sebastião, só tinha acesso à civilização através da linha ferroviária da companhia Vale do Rio Doce. Por vezes, na estação das chuvas, ocorriam aluimentos de terras que deixavam as povoações isoladas durante meses, o que em nada afectava o delicado equilíbrio homeostático, natural e social, que ali haviam construído durante décadas. Foi neste paraíso nostalgicamente evocado que o jovem Sebastião nasceu e cresceu, em deleite de felicidade pura. Os pais autorizavam-no a visitar as irmãs, já casadas, que moravam em terras longínquas para os nossos padrões, mas não para os de quem habitava um país que, como ele recorda, tem quinze vezes o tamanho de França. Com alguns companheiros e empregados, o pai chegava a fazer caminhadas que demoravam 45 dias de viagem, transportando varas de centenas de porcos pelos trilhos e veredas de Minas Gerais. Sebastião participava nessas digressões pelo interior do Brasil, em que o dia começava às quatro da madrugada com um prato de feijão tropeiro. Encontra nessas juvenis jornadas a explicação para tudo o que será depois, um «fotógrafo do mundo» em permanente errância, que já esteve em mais de 120 países. «Alguns dizem: Salgado tem delírios de grandeza. Nasci num país imenso», observa.

          Além da escala e da dimensão espacial, há outra faceta que Sebastião Salgado, algo previsivelmente, realça desde o início destas suas memórias: o tempo. O livro começa, aliás, com uma descrição do tempo e da paciência que despendeu em 2004 para conseguir captar imagens de uma tartaruga gigante das Galápagos. Um dia inteiro para se aproximar do animal antediluviano que, arrastando vagarosamente os seus 200 quilos, se esquivava com sucesso a qualquer contacto humano. «Quem não goste de esperar não poderá ser fotógrafo», é a frase – de resto, assaz vulgar – com que abre o livro, obra em que se define como um «caçador de imagens» que sabe aguardar pelas suas presas. Esta aprendizagem da lentidão é igualmente remetida para a infância e juventude, lembrando o fotógrafo os longos dias dos trajectos a cavalo pelo interior brasileiro, em que os caminheiros «tinham tempo para falar, contemplar a paisagem». «Essa lentidão é a mesma da fotografia».

          Aos 15 anos, foi viver para Vitória, no Estado de Espírito Santo, onde concluiu os estudos secundários. Enquanto estudava, trabalhava na tesouraria da Alliance Française, iniciando uma ligação profunda à cultura francófona que perdura até hoje, sendo Paris a cidade onde reside e possui a agência fotográfica que fundou com a sua mulher, Lélia Wanick. Conheceu-a justamente quando trabalhava na Alliance Française, tendo ele vinte anos e ela dezassete. O casal permanece junto há mais de 45 anos, com flutuações e crises conjugais que Salgado não escamoteia, naquele que, a par das linhas dedicadas ao filho Rodrigo, com síndrome de Down, é o momento mais intimista das suas Memórias. As constantes menções que faz à sua mulher comprovam que esta tem um papel determinante quer na concepção dos seus diversos projectos fotográficos, quer na arquitectura dos seus livros, quer, enfim, na difusão universal da sua obra.

          Depois de se licenciar em economia, fez um mestrado na Universidade de São Paulo. Nas aulas da universidade, e sobretudo no convívio dos meios estudantis, foi marcado pela ideologia terceiro-mundista que, de uma forma mais matizada e mesclada de outros elementos agora mais salientes (v.g., o ambientalismo e a antiglobalização), continua a caracterizar a sua concepção do mundo. Sem ter aderido ao Partidão, reconhece a influência que os comunistas tinham nos meios que frequentava, só igualada pela das associações cristãs de esquerda, como a Juventude Escolar Católica. Sem explicar como lá chegou, juntar-se-ia a um grupo mais radical, a Acção Popular, que a dado passo, e sob inspiração cubana, trilhou a via sinuosa da luta armada. Sebastião Salgado não especifica se participou em algumas das acções desse grupo nem alude ao facto de, segundo se diz, ter conhecido pessoalmente o mítico guerrilheiro urbano Carlos Marighella (a grande biografia de Marighella, publicada em 2012 por Mário Magalhães, não faz qualquer menção ao fotógrafo). Refere, todavia, que a instauração da ditadura militar, em 1964, o obrigou a exilar-se juntamente com a sua mulher. Em Agosto de 1969, o jovem casal partiu de barco rumo a França, «a pátria dos direitos humanos e da democracia». Em Paris, Lélia matriculou-se em arquitectura e Sebastião preparou o seu doutoramento em economia. Para custear as despesas, ele descarregava camiões da residência universitária onde viviam e ela trabalhava na biblioteca. Aos fins-de-semana, num 2cv, atravessavam o país de lés a lés para angariar fundos de apoio aos exilados brasileiros que afluíam ao país, trazidos clandestinamente através da Argentina e do Uruguai. Aos sábados, iam com os compatriotas a Verdun ou a Metz, e cozinhavam pratos brasileiros para os almoços em que Lélia cantava para os seus companheiros de luta e de infortúnio. A experiência revelar-se-ia essencial na afirmação futura de Sebastião Salgado como fotógrafo engagé. Foi nessa época que entrou em contacto com uma miríade de organizações – de confederações sindicais ao Partido Comunista, passando pelos movimentos cristãos como o CCFD (Comité Católico contra a Fome e para o Desenvolvimento) e o Cimade (Serviço Ecuménico de Ajuda Mútua, de apoio aos imigrantes) – que teriam papel decisivo na publicação dos seus primeiros trabalhos. Na Primavera de 1970, o 2cv de Sebastião e Lélia levá-los-á a Genebra, onde era mais barato adquirir o material fotográfico de que ela necessitava para os seus estudos de arquitectura. Ao captar as suas primeiras imagens, Sebastião ficou maravilhado. Tinha 26 anos, pegara na máquina de Lélia por casualidade. «Nasceu em mim um entusiasmo incrível». Sonharam na altura comprar uma Volkswagen Kombi e percorrer África num périplo fotográfico, desconhecendo que, anos mais tarde, aquele misterioso continente iria servir de cenário a alguns dos mais importantes projectos de Sebastião Salgado, com destaque para o que se materializaria em livro em 2007, justamente com o título África.

          Concluídos os estudos pós-universitários em Paris, obtém um confortável e promissor lugar em Londres, na Organização Mundial do Café. Projectava redigir aí a sua tese, o que acabou por não fazer. Nesse tempo, o casal vivia desafogadamente e gozava as delícias do consumo conspícuo, adquirindo um magnífico Triumph e um espaçoso apartamento nas imediações de Hyde Park. O seu trabalho, alinhado com a voga desenvolvimentista que então marcava as organizações internacionais, pô-lo em contacto com o Banco Mundial e com a FAO. Nesse âmbito, foi um dos responsáveis pela introdução da cultura do chá no Ruanda. Em 1991, quando ali se deslocou no âmbito do projecto A Mão do Homem/Trabalho, ficou maravilhado com as plantações, dizendo que o Ruanda produzia o melhor chá do mundo, o mais cotado de todos na bolsa de Londres. Três anos depois, o tempo iria sofrer uma súbita aceleração. Em 1994, no espaço de poucos meses, o sangrento conflito entre hutus e tutsis vitimaria praticamente um milhão de pessoas, dizimando um décimo da população do país. Sebastião Salgado fotografaria os refugiados desta tragédia, das maiores que África conheceu no século XX.  

          África foi o «meu outro Brasil», a terra onde reencontrou a imensidão da escala que na Europa lhe faltava. Aos domingos, remando num barco alugado no lago de Serpentine, em Hyde Park, partilhava com Lélia a angústia de uma radical opção de vida, interrogando-se sobre se deveria dedicar-se inteiramente à fotografia. Acabou por fazê-lo, deixando o emprego certo na Organização Mundial do Café. O Triumph e o apartamento londrino foram vendidos, Sebastião regressou a Paris. No Verão desse ano, com Lélia grávida de Juliano, o primogénito, fizeram a primeira expedição fotográfica a África, uma travessia do Níger com os compagnons do CCFD. Esta organização católica iria utilizar uma das fotografias aí tiradas por Salgado num cartaz da campanha La terre est à nous. De súbito, a imagem estava afixada em todas as igrejas de França. O dinheiro pago pela CCFD era suficiente para comprarem um pequeno apartamento, mas decidiram investi-lo antes na aquisição de material fotográfico: as inevitáveis Leica e um ampliador. Salgado não descreve a sua profissionalização como fotógrafo em tons grandiloquentes nem evoca qualquer sentido de «missão» no rumo que deu à sua vida. Essa é, aliás, uma das qualidades destas Memórias, a lhaneza com que o fotógrafo descreve o seu trabalho, raramente lhe atribuindo propósitos que transcendam o próprio acto de fotografar. Tal discurso é, por vezes, levado a extremos, nomeadamente ao rejeitar o qualificativo de fotógrafo «militante», quando, na verdade, existe um inquestionável engajamento político-ideológico em praticamente todos os seus projectos, facto que, em si mesmo, não merece censura ou sequer crítica. Aliás, apesar de recusar o epíteto de «militante», assume e convive tranquilamente com a natureza ideológica de muitos dos trabalhos que desenvolve, esclarecendo apenas, e bem, que essa dimensão não explica a totalidade da sua obra.

          Tomada a decisão de se profissionalizar como fotógrafo, a lentidão do tempo sofreu um repentino revés e a carreira acelerou de forma fulgurante. De permeio, os testemunhos de brasileiros exilados em Praga e algumas desventuras vividas no bloco de Leste (na RDA, Sebastião e Lélia viram-se subitamente rodeados pela polícia, «uns tipos cobertos de cicatrizes, de aspecto terrível», que lhes apontavam metralhadoras) afastam-no em definitivo da órbita do comunismo: «demo-nos conta que o sistema que para nós representava um certo romantismo era desprovido de qualquer sensibilidade». Não abandonando um programa que define por «fotografia social», passou a situar-se num certo limbo ideológico. Neste no man’s land de referências, o progressismo católico teve um efeito salvífico. Salgado começou a trabalhar mais intensamente com o CCFD e com o Cimade, publicando as suas reportagens nas páginas de Cristiane, de La Vie Catholique ou de SOS, o periódico mensal do Secours Catholique. Apesar da marca eclesial, não eram boletins paroquiais: La Vie Catholique tinha uma tiragem de 500 mil exemplares e SOS editava todos os meses um milhão de cópias. O nome de Sebastião Salgado como fotógrafo do subdesenvolvimento começa a tornar-se conhecido e, sem cometer a injustiça de dizer que o exilado brasileiro procurou satisfazer os desejos do Zeitgeist dos alvores dos anos 70, o certo é que os temas que elegeu e até a pureza e a crueza das suas imagens a preto e branco estavam em sintonia perfeita com o gosto do grande público e também com o ethos das organizações internacionais, quer as que gravitavam na órbita das Nações Unidas, quer as que se orgulhavam do seu carácter «não-governamental». Nunca foi um «criador», um alternativo ou marginal ao establishment. Pelo contrário. Recusando qualificar-se como fotojornalista, mas igualmente não ousando realçar a natureza «artística» das suas imagens, granjearia o entusiástico apreço das organizações internacionais, trabalhando com frequência para a UNICEF, os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha ou a ACNUR. O «humanismo» dos seus projectos ia plenamente ao encontro do «humanitarismo» das instituições internacionais, cuja actividade muito dependia de campanhas em que a imagem fotográfica desempenhava um papel fundamental na sensibilização das consciências e na mobilização das boas vontades.

          Entre a geopolítica da fome e o pós-marxismo antiautoritário, a que se adicionam laivos do tradicional antiamericanismo francês, Salgado compara o seu trabalho ao da literatura: «aquilo que os escritores reconstroem através das suas plumas, eu reconstruo através das minhas câmaras. A fotografia é para mim uma forma de escrita. É uma paixão, porque amo a luz, mas é também uma linguagem». Memórias é um livro excessivamente atravessado por observações deste género, destituídas de especial originalidade ou densidade. De facto, e como igualmente acontece com muitos outros criadores, é nas suas obras fotográficas, e não no discurso que desenvolve em seu redor, que o talento de Sebastião Salgado mais se destaca.

          Para isso – e o autor reconhece-o – muito contribuiu uma larga experiência nas mais conceituadas agências fotográficas do mundo. Esteve um ano na Sygma, trabalhou na Gamma entre 1975 e 1979, onde beneficiou do contacto com colegas de ofício como Raymond Depardon, Marie-Laure de Decker ou Hugues Vassal e sobretudo do redactor-chefe da agência, Floris de Bonneville. «Devo muito a Floris», diz, acrescentando, o que provavelmente corresponde à verdade, que a sua formação académica como «economista global» lhe trouxe um olhar sobre a realidade do trabalho à escala planetária que outros não possuem. O «sistema», por outro lado, encontrava-se particularmente predisposto a acolher as suas fotografias e o seu estilo despojado e directo, tendo as imagens de Salgado sido divulgadas nas mais reputadas publicações do Ocidente, como Paris Match, Stern, Time ou Newsweek. O seu lançamento enquanto fotógrafo coincide com o período da afirmação do Terceiro Mundo como ideologia e prolonga-se na fase de autocrítica pós-colonial feita pelos meios intelectuais e pela opinião pública do hemisfério Norte. Se o seu discurso assume, com frequência, contornos luditas e condenatórios do «progresso», o seu anti-ocidentalismo não comporta uma dimensão autopunitiva. A invocação das raízes brasileiras, uma vez mais, é um argumento utilíssimo, que o exime a tal exercício de flagelação. «Não sou originário da metade norte do mundo e não partilho o sentimento de culpabilidade de alguns dos meus colegas», afirma, poucas páginas antes de anunciar que em 1994, juntamente com Lélia, fundou a Amazonas Imagens, com sede nas margens do Canal Saint-Martin, em Paris.   

Sebastião Salgado herda e nasce no seio do terceiro-mundismo das décadas de 60 e 70, acompanha a vaga humanitarista dos anos 80 e a partir daí afirma-se através de um conjunto de obras publicadas em vertiginosa cadência, de que se destacam Outras Américas (1986), Trabalho (1993), Terra (1996), Êxodos (2000), África (2007) e Génesis (2013). Integra uma plêiade de intelectuais e criadores – como García Márquez ou José Saramago –, quase todos de esquerda e provindos das periferias, que alcançaram sucesso mundial graças a dispositivos de promoção que, actuando segundo princípios de mercado, os projectaram a uma larga escala, como marcas ou objectos de consumo de massas. Esta constatação não transporta qualquer carga pejorativa nem possui um sentido condenatório. Evidencia, tão-só, que o Ocidente é acometido, com regular frequência, por sentimentos de culpabilidade e insatisfação, a que deu implacável resposta através dos seus próprios mecanismos de autodefesa: com extraordinária eficiência, criou uma lucrativa «indústria» vocacionada para padrões de consumo que só na aparência são «alternativos». Assim, instauraram-se hábitos, modas e, na linguagem do marketing, «nichos de mercado» que permitem aos compradores aliviarem as carteiras, as depressões e o stress, mas também as consciências, humanitárias ou ecológicas. Dos cosméticos feitos exclusivamente à base de produtos naturais às novas espiritualidades de raiz oriental, passando pela world music ou pelas viagens a lugares ainda não devassados pelo turismo de baixo custo, tudo remete, afinal, para a mesma lógica. O altermundialismo académico e político, a moda literária do realismo mágico ou os coffee table books com fotografias de Sebastião Salgado inscrevem-se igualmente nessa vaga e participam em pleno deste comércio, com a enganadora convicção de que o não fazem – ou, pior ainda, com a presunção de que, apenas por adoptarem um registo crítico nas suas intervenções, são moralmente superiores perante o capitalismo e suas perversidades.       

          Em 1976, o governo brasileiro recusou renovar-lhe o passaporte. De imediato, a República francesa concederia a sua nacionalidade ao expatriado da ditadura militar. Juntamente com um amigo, Augusto Boal, encenador brasileiro refugiado em Portugal, impugnaria judicialmente a decisão do Itamaraty, vencendo a causa nos tribunais e assim criando um precedente para todos os que, como ele, viviam exilados – e que logo contrataram advogados para seguirem o seu exemplo. Não admira, pois, que, nestas Memórias, por diversas vezes sejam louvados Lula da Silva e Dilma Rousseff. Quanto aos demais e actuais líderes da América Latina, não é feita qualquer referência.    

No ano de 1979 ocorrem duas importantes mudanças na sua vida. Graças à lei da amnistia, obteve autorização para regressar ao Brasil e, por outro lado, começou a trabalhar na Magnum, agência onde permaneceu quinze anos, conhecendo nomes lendários da fotografia como Henri Cartier-Bresson ou George Rodger. Em 1981, no decurso de um trabalho para o New York Times, teve a suprema ventura de, por um acaso, estar muito próximo do local em que Ronald Reagan foi vítima do famoso atentado a tiro à porta do Washington Hilton Hotel. Todas as fotografias que tirou nessa ocasião foram imediatamente vendidas, por um preço que o autor não especifica mas que, por certo, terá sido muito elevado, pois, segundo ele, as imagens do presidente Reagan baleado em Washington permitiram restaurar as suas finanças pessoais e também as da própria agência Magnum. É sintomático que, passado esse furor mercantil, Sebastião Salgado, em conjunto com a sua mulher, tenha decidido que aquelas fotografias nunca mais deveriam ser publicadas. Com essa decisão tão radical, e que por certo implicou avultados prejuízos financeiros, pretendeu o casal acentuar que Salgado não era um fotojornalista. Por isso, só um imperativo publicitário explicará que, na capa da edição francesa destas Memórias, surja a afirmação do The Sunday Times: «O maior fotojornalista do mundo». Não é essa, decididamente, a imagem que Sebastião Salgado quer transmitir, mas antes a de um fotógrafo planetário. Consolidada a sua reputação, galardoado em 1986 com o World Press Photo, afirmou-se paulatinamente como o autor de grandes reportagens que levavam anos a planificar e implicavam a sua deslocação a vários pontos do globo, pois só assim conseguiria encontrar coerência a uma escala tão grande, a maior escala possível. Coerência temática, acima de tudo, mas também coerência conceptual e iconográfica. Cada reportagem seguia um método preciso, que começava na escolha do tema (trabalho, migrações) e acabava na edição de um livro de grande formato e em amplas exposições que percorriam as principais cidades do hemisfério Norte. Para melhor concretizar este programa, sairá da Magnum e, em 1994, fundará com Lélia a Amazonas Images, que reúne em Paris uma equipa de várias pessoas, entre documentalistas, especialistas em imagens digitais e reveladores fotográficos.

          Só de uma maneira muito fugaz e lateral Memórias consegue captar a envergadura do trabalho de Sebastião Salgado, a imensidão dos espaços que percorreu, aquilo que lhe permite assumir-se como legítimo herdeiro dos grandes foto-repórteres do passado e da sua glamorosa intrepidez. Quando chegou à Serra Pelada, no Pará, e desceu à mina, foi recebido com hostilidade pelos que, cobertos de lama e terra, se assemelhavam a figuras de barro lavradas pelo Aleijadinho. Enquanto descia a 70 metros de profundidade, 50.000 homens encaravam-no de forma ameaçadora, julgando ser um espião a soldo da empresa Vale do Rio Doce, que vinha apropriar-se da preciosa terra e expulsá-los dali. A lentidão do tempo encarregar-se-ia de desfazer o equívoco, a ponto de, conquistada a familiaridade dos garimpeiros, ter ficado a saber que, entre aqueles machos rudes que escavavam a lama na febre do ouro, se encontravam uma comunidade gay e até transsexuais. A dado passo, um mineiro, com o corpo coberto de cicatrizes de navalhadas, confessa-lhe que, se a sorte o bafejasse, utilizaria a fortuna para concretizar o sonho da sua vida: viajar até Paris para aí implantar peitos de silicone de primeira qualidade, os melhores, os mais belos de todos. As histórias sucedem-se, em todas as partes do mundo: em Cuba, são os torcedores de tabaco que outrora narravam fastos da corte do rei Artur e agora, enquanto fabricam os puros, desfiam as vidas heróicas de Marx e Lenine. Em Moçambique, surgem os exorcismos contra os espíritos da guerra, em que fantasmas eram massacrados com catanas e espingardas, prática imprescindível à reconciliação dos povos divididos por um conflito fratricida. Os refugiados que, sedentos, se atiravam às águas do rio Zambeze, sendo devorados pelos crocodilos que se ocultavam na obscuridade. Ou uma mulher carregada de sacos que caminhava a pé com um bebé de colo e que o informou, com a maior das naturalidades, que lhe faltavam percorrer ainda 1.250 quilómetros para chegar a Maputo, o seu destino. Na fronteira com a Tanzânia, o horror das centenas de cadáveres de ruandeses que ficavam aprisionados num ponto preciso do rio Akagera, aquele em que as águas faziam um remoinho poderoso. Em Memórias, episódios como estes surgem de forma fugidia e passageira, pelo que seria importante, até para registo futuro, que o fotógrafo acedesse a narrar com mais detalhe, numa obra de maior fôlego e volume, as centenas ou milhares de situações singulares com que certamente se deparou na sua vasta carreira.          

          Há uma honestidade essencial no labor de Sebastião Salgado. Salvo em casos extremos, como nos livros dedicados ao Sahel (Sahel, l´homme en détresse, de 1985, e Sahel, el fin del caminho, de 1988), exime-se a exibir a dor alheia nos seus cambiantes mais sombrios e cruciantes, sabendo que o fotojornalismo contemporâneo se encarrega de o fazer hoje em doses de tal forma excessivas que já nem consegue despertar a sensibilidade de quem, parafraseando Susan Sontag, olha o sofrimento dos outros.

O fotógrafo reconhece alguma margem de manipulação naquilo que faz. Por exemplo, ao afirmar que procura traduzir as suas emoções «numa linguagem que não é real, uma vez que o preto e branco é uma abstracção». Porventura, é nessa ambiguidade entre o extremo realismo das situações que retrata e no modo «inautêntico» como o faz que reside uma das chaves do seu sucesso. Muitas imagens de Génesis, por exemplo, com destaque para as das majestosas montanhas cobertas de neve pura, provocam em nós a sensação irreprimível de que o fotógrafo não quis retratar a Terra, mas antes um outro planeta, fruto da sua imaginação poética e do nosso desejo de acreditarmos que tudo aquilo realmente existe, numa acidental conjugação de quatro elementos tão simples quanto essenciais: água, fogo, terra e luz.

É difícil resistir à sedução e ao fascínio suscitados pelas paisagens arrebatadoras de Génesis, sentimento que, aliás, as reportagens de Salgado sempre despertaram. As imagens dos formigueiros humanos no golden rush da Serra Pelada são capazes de cativar emocionalmente milhões de pessoas porque, em simultâneo, são trágicas mas surpreendentemente belas, sem jamais suscitarem sentimentos de visceral repulsa ou consternação excessiva. Como ele refere, «ao contrário do que acontece no cinema ou na televisão, a fotografia tem o poder de produzir imagens que não são planos contínuos, mas cortes de planos. São fracções de segundo que relatam histórias inteiras». Na verdade, a sedução das imagens de Sebastião, como a de muitos outros, reside menos naquilo que mostra mas no espaço que concede à imaginação de quem contempla, obrigado a adivinhar o que existiu antes e logo depois do instante decisivo. Está consciente do poder mágico, talvez xamânico, do corte de plano, aquilo que diferencia uma imagem de Génesis de um documentário da National Geographic.

Tal não significa, naturalmente, uma confiança total no poder evocativo da imagem. Os livros de Sebastião Salgado são acompanhados de textos, os quais, porém, são eminentemente informativos e descritivos, concentrando-se o essencial da retórica nas próprias imagens fotográficas. Às vezes, vai-se mais longe na combinação da linguagem escrita e visual. Visando apoiar o Movimento dos Sem Terra e sendo promovido pela associação Frères du monde, o livro Terra, editado entre nós pela Caminho, conta com uma introdução de José Saramago e versos de Chico Buarque; por sua vez, o intróito de Trabalho, igualmente publicado pela Caminho, foi escrito pelo fotógrafo em conjunto com o escritor Eric Nepomuceno; e Mia Couto participou em África, obra com chancela da Taschen. Nada disso, porém, infirma a ideia de que é na imagem, e apenas nela, que Sebastião Salgado naturalmente concentra o fulcro do seu discurso. Daí a importância destas Memórias, que confirmam o acerto e a sensatez de tal opção. De facto, quando vai além da fotografia, como aqui acontece, as afirmações que produz são de uma impressionante vulgaridade, abundando frases como «a fotografia é a minha vida», «para tirar boas fotografias há que ter muito prazer em fazê-lo» ou «quando carrego o obturador, entrego-me inteiramente a esse gesto».    

          Existe também uma dimensão, por assim dizer, «religiosa» na sua obra, especialmente visível em Génesis (desde logo, no próprio título, obviamente). Dizendo-se não-crente, porque partidário da teoria evolucionista de Darwin (como se essa dualidade ou esse antagonismo ainda fizessem sentido…), Sebastião Salgado fala de uma «harmonia original», que irmana todos os seres vivos, animais e plantas, apoiando essa reflexão numa epifania ocorrida quando fotografava as iguanas das Galápagos. As escamas das suas patas, diz-nos, assemelhavam-se de forma surpreendente às couraças metálicas dos cavaleiros medievais, confirmando a tese da existência de uma fraternidade cósmica entre todas as criaturas do Génesis. Se olharmos além da trivialidade desta comparação, perceberemos que, com efeito, muitas das suas imagens de evocam uma dimensão espiritual e pretendem restaurar uma sacralidade perdida. E, de facto, o tremendo sucesso de Génesis e o frémito que provoca naqueles que o contemplam beneficiam em muito do facto de vivermos numa época pós-secular, ávida de referências transcendentes. Em 1994, o autor decidiu rapar diariamente o cabelo e a barba, evitando a constante infestação de parasitas, o que lhe conferiu o aspecto de um monge laico, austero e frugal, imbuído de espírito missionário e firmemente convicto da superior virtude da mensagem que proclama. A isto acrescem as menções, com contornos sacrificiais, às agruras fundas do seu labor, realizado quase sempre em condições terrivelmente adversas.

Génesis foi apresentado como um poema épico dedicado à Terra, um hino ao planeta nas suas múltiplas escalas, que vão do detalhe da pata de uma iguana à extensão infinda de uma cordilheira encoberta por nuvens alvíssimas. A escala é o ponto central da sua gramática, como aliás Salgado nos explica quando fala de um dos seus primeiros grandes projectos, dedicado ao trabalho: não pretendeu abordar os artesãos mas os que laboram em unidades industriais gigantescas; pouca ou nenhuma atenção deu ao comércio ou aos trabalhadores dos serviços. O seu olhar incidiu sobre os operários dos estaleiros de Gdansk ou os pescadores de atum da Sicília, sobre os mineiros da Serra Pelada e, numa série impressionante, sobre os trabalhadores de um matadouro industrial do Dakota onde se sacrificam 1.000 suínos por hora e 2.000 vacas por dia. No primeiro dia em que aí esteve, os vómitos causados pelo cheiro nauseabundo impediram-no de fotografar. Os que aí trabalhavam auferiam bons salários mas enfrentavam das piores condições laborais que Sebastião viu em todo o mundo. Piores do que elas só talvez as dos homens que, em Java, recolhiam enxofre no interior da cratera do vulcão Kawah Ijen, recebendo cerca de 3,5 dólares por cada arriscadíssimo trajecto que faziam entre fumos mortalmente tóxicos.

          Mais do que uma versão aggiornata de grandes paisagistas como Carleton Watkins, William Jackson ou Ansel Adams, mas ainda assim comungando do panteísmo que os animava, Sebastião Salgado pretendeu com Génesis deixar-nos uma proclamação do seu amor mundi (a «minha homenagem à grandiosidade da natureza», escreve o autor no prefácio). O projecto, segundo refere nas Memórias, teve um efeito pedagógico: obrigou-o a aprender a fotografar não-humanos e a respeitar a lentidão dos seus ritmos, descobrindo ainda uma «racionalidade própria» em todas e em cada uma das espécies animais que encontrou pelo mundo fora. No decurso deste trabalho, empreendeu no Outono de 2008 aquela que considera ter sido a viagem da sua vida. Na Etiópia, uma caminhada a pé de 850 quilómetros, que durou três meses. A caravana, composta por quinze pessoas e dezoito burros de carga, retomou os passos do Antigo Testamento (ponto que Salgado faz questão de assinalar), trilhando caminhos que, segundo o fotógrafo, não eram percorridos há milénios. As cotas mais baixas por que passaram situavam-se a altitudes entre os 1.000 e os 1.500 metros e, em três ocasiões, andaram acima dos 4.200 metros. A excursão, porém, não dispensou o auxílio das mais modernas e sofisticadas tecnologias. A caravana era guiada com o auxílio de um GPS e todos os dias Sebastião Salgado utilizava o telefone por satélite para contactar a Géo-Découverte, empresa suíça especializada em desenhar itinerários para cientistas e exploradores.  

          Logo a abrir estas Memórias, Isabelle Francq refere que observar uma fotografia de Sebastião Salgado é «experimentar a dignidade humana». Este «humanismo» prolonga a tradição da foto-reportagem, revisitando aproximações como as de Walker Evans ou Dorothea Lange e a linha exibida por Steichen em The Family of Man, mas situando o olhar, e a ética que lhe subjaz, num contexto planetário. Formalmente, busca-se a depuração total, muito evidente em Génesis, que acentua os contrastes do preto e branco para explorar à exaustão as tonalidades do cinzento, sendo estas últimas que desempenham o papel central na definição do relevo das formas e dos contornos – como, aliás, Salgado sublinha nas suas Memórias, referindo ainda que a sua opção pelo preto e branco lhe trouxe não poucas dificuldades, designadamente quando se fixou em territórios completamente brancos, como a Antárctida ou a Sibéria. O resultado final, aqui com noutros trabalhos, é indubitavelmente a different light, título da mais completa monografia sobre o fotógrafo, escrita por Parvati Nair e publicada em 2012.  

          Sebastião Salgado concluiu Génesis aos 70 anos de idade. Confessa que esse trabalho o reconciliou com a humanidade, após a terrífica experiência de Êxodos: «em Êxodos enfrentei o lado mais severo e violento da nossa espécie e pensei que a espécie humana jamais poderia aspirar à salvação. Ao realizar Génesis, mudei de opinião». A transição do analógico para o digital, feita em 2008, no decurso desse projecto, processou-se sem problemas de maior, até porque o fotógrafo e os seus colaboradores, num esforço de grande complexidade, mantiveram muitos dos métodos e dos formatos tradicionais. Até 2004, Salgado operava com câmaras Leica e película Tri-X 400, em formato 24 × 36, tendo passado a trabalhar entre 2004 e 2008 com câmara Pentax 645 em formato 4,5 × 6. Em 2008, a Canon emprestou-lhe a sua câmara mais sofisticada, a 1 Ds Mark III e isso convenceu-o a adaptar-se à nova tecnologia, que para mais tem incomensuráveis vantagens logísticas num tipo de trabalho como o seu. Ainda assim, confessa-se incapaz de seleccionar imagens num computador, pelo que não prescinde da realização de provas de contacto impressas a jacto de tinta, que Sebastião Salgado examina à lupa, após o que os seus colaboradores realizam cópias de leitura em 13 × 18 e, depois, cópias em 24 × 30. Para ele, as provas de contacto continuam a ser essenciais para, em estúdio, reviver o episódio passado a milhares de quilómetros dali. Trata-se de uma observação interessante para quem enaltece a singularidade da fotografia como um corte de planos. É que, na verdade, mesmo o corte de planos não dispensa, quanto mais não seja ao nível da selecção e da escolha, a sucessão de imagens captadas no mesmo momento. Mais do que isso: se cada fotografia é, em si mesma, um corte de planos, um projecto fotográfico, como aqueles que Sebastião e Lélia concebem, implica uma sequência e uma coerência internas, uma unidade de sentido. Quando folheamos um livro de Sebastião Salgado, apercebemo-nos com mais clareza desta dimensão «fílmica» das suas intervenções. O seu êxito reside também nesse equilíbrio entre unidade e diversidade. As imagens agregam-se em torno de um denominador comum, o leit-motiv que permite falar de um «projecto»; mas, em simultâneo, afluem de todas as partes do mundo. Podemos assim contemplar uma realidade como «o trabalho», por exemplo, seja através de dezenas de imagens, ordenadas e observadas sucessivamente, seja através de uma só imagem – a do pescador siciliano que se prepara para La Mattanza do atum mediterrânico ou a do operário chinês de uma fábrica de bicicletas. Sebastião e Lélia Salgado sabem aproveitar, como poucos, as imensas potencialidades – estéticas e visuais, políticas e comerciais – de um «projecto», em que as fotografias são colocadas em conjunto e vistas em sequência, quer percorrendo as salas de uma exposição, quer folheando as páginas de um livro impresso em papel couché. A heterogénea origem das imagens, vindas de pontos muito distantes entre si, acentua a noção de diversidade, a qual, por sua vez, é comprimida e adquire consistência ou sentido graças ao «tema» que as unifica.    

Habituado a trabalhar sozinho, em muitas reportagens de Génesis, até por razões de segurança, fez-se acompanhar de um assistente. O tempo de maturação dos seus projectos (Êxodos, por exemplo, demorou seis anos a realizar) e até o conteúdo deste seu trabalho fazem adivinhar que Génesis marcará a etapa final da sua carreira. É legítimo especularmos se este projecto não terá sido concebido precisamente como a sua derradeira obra, em jeito de testamento vital ou testemunho esperançoso. Antes de o casal Salgado se lançar nesta empresa, a Conservation International, a maior ONG de conservação ambiental do mundo, forneceu-lhe estatísticas animadoras: aproximadamente 46 % da superfície do planeta permanece intacta; 99,9 % da Antárctida continua virgem; a floresta amazónica, em 75 % da sua extensão, não está ainda afectada. Foi toda essa terra incognita que Sebastião pretendeu desvendar diante dos nossos olhos. Não trabalhou na Europa, porque aí praticamente não resta qualquer lugar intacto. Em contrapartida, deteve-se no arquipélago chileno de Diego Ramírez, situado entre o cabo Horn e a Antártida, indo depois para as Malvinas, para a ilha Geórgia do Sul e para as ilhas Sandwich do Sul, que alojam o maior santuário mundial de pinguins selvagens e onde um vulcão permanece activo. O fotógrafo chama-lhes «ilhas do fim do mundo» e refere que é aí que os ventos dão meia-volta. Vão até lá, a um arquipélago situado nos confins do mundo, e depois regressam até nós, soprando com redobrada força. Mais do que as suas Memórias, talvez seja esta a imagem que melhor descreve a vida e a obra de Sebastião Salgado Júnior. 

 

             Texto publicado no Observador, em 14 de Junho de 2014

 

                                                                            António Araújo